Elize
acorda no meio da noite ao ouvir barulhos estranhos em sua casa. Ela sempre
reclamara de barulhos, porém, seus pais faziam assim como todos faziam, ignoravam-na.
Ela tinha 22 anos, cabelos compridos, gostava de roupas largas, odiava calças.
Certa vez, quando todos foram à cidade, ela recortou todas as calças que haviam
em sua casa. As calças de seu pai, as ceroulas de sua mãe e as da Fátima, e as
calças do Jairo. Tudo em picadinhos no meio da sala. Esse seu feito lhe rendeu
vergões feitos pela cinta de seu pai. Os vergões renderam à sala uma pequena
poça de urina feita por Elize. Agora, cada vez que ela vê uma calça,
angustia-se, esconde-se, fecha os olhos com força e pede para ser levada.
Ignoram-na. Ela já estava acostumada a ser assim tratada, com indiferença. Se
chegam parentes em sua casa, ela vai para seu quarto. Se o leiteiro entrega o
leite, ela vai para seu quarto. Se ouve carroças passando na rua, ela vai para
seu quarto.
Seu
quarto era bastante peculiar. Maior que a maioria dos quartos daquela cidade.
Possuía duas camas, sendo uma sem pés e outra com pés altos. Os mistérios
escondidos sob as camas deixavam Elize impaciente, então, seu pai, engenhoso,
resolveu seus problemas assim. Mas naquela noite, o que perturbava Elize não
vinha debaixo da cama, nem das calças. As camas e as calças costumavam produzir
barulhos indecifráveis soprados no seu ouvido. Os barulhos que aconteciam agora
eram exatamente o contrário disso: nítidos e distantes.
Os
pais de Elize comentavam para seus amigos que haviam enviado a garota pequena
para a França, estudar. E que suas cartas eram inegavelmente de uma garota
formada pela escola francesa, com no mínimo um terço de firulas e palavras que
não precisavam estar ali para darem sentido, mas que precisavam estar ali para
dar credibilidade. Por vezes, Elize ouvia histórias suas que nunca viveu, e
sentia-se feliz com isso, pois aquele era o momento que percebia a importância
que sua família a dava. Não cansavam de demonstrar como ela era linda,
estudiosa e inteligente. Não cansavam de dizer que sentiam saudades, que não
viam a hora de poder vê-la de perto, de ver seu rosto pleno de vigor juvenil. Não
casavam de dizer que amavam-na. Todavia, nem entravam no quarto de Elize. A
última vez que seu pai entrou no quarto foi para colocar os pés altos na cama
dela.
E
Elize era feliz assim, do seu jeito. Mal sabia ler. Pensava que França era o
nome de uma escola. Urinava-se ao ver cintas. Escondia-se ao ver calças. E o
único toque real que tinha era de Fátima, babá, dama de companhia, empregada e
tudo o que uma funcionária possa ser para transformar uma casa em lar. As
coisas poucas que a vida havia ensinado para Fátima, Fátima ensinara para
Elize. Das melhores coisas que Fátima fazia além de seus biscoitos mágicos, era
contar histórias. E contava sobre João e Maria, Pinóquio, João e o Pé de
Feijão, Três Porquinhos, Lobo Mau, Drácula, Romeu e Julieta e por aí vai. Certo
dia, Fátima achou um livro de geografia e esqueceu no quarto de Elize, ao menos
é isso que Fátima conta. Elize leu, viu mapas geográficos, políticos e
demográficos, viu florestas, viu perspectivas. Fátima leu Elize, viu resultados
positivos, ela estava mais sociável, mais aberta ao novo, com sede de palavras.
A babá sempre achava livros e sempre esquecia no quarto, ao menos uma vez por
semana. Ler diminuía os barulhos sob as camas, das calças e dos cintos. Mas
aquela noite foi apavorante. Ouvia a voz de sua mãe abafada por uma mão mais
forte que a mão de seu pai. O silêncio de seu pai era ensurdecedor.
Sem
entender a situação, Elize colocou algumas coisas sobre a cama sem pés, da mesma
forma que ela havia visto no livro Sobreviva
na Mata Atlântica, inclusive colocou este e outros livros. Ela juntou as
quatro pontas do lençol, formando uma trouxa. Abriu a porta de seu quarto com
medo. A porta da sala estava aberta. Não houve pensamento dúbio. Ela partiu. Ao
olhar para trás, percebeu um rosto de olhar fixo aos seus movimentos.
Depois
de andar até o clarear do dia, Elize senta-se à sombra de uma árvore, abre sua
trouxa, come um pedaço de pão e compartilha da água do açude que estava ao seu
lado junto com um cachorro que estava a seguindo desde que saiu da cidade. Ela
oferece um pedaço de pão para o cachorro, que a ignora.
-
Até o cachorro me ignora! – exclamou Elize.
Resolveu
assobiar para chamar a atenção do animal. Obteve sucesso. Nomeou o cão de
Assobio. Por ali ficou algum tempo. Dormiu por uma hora ou um pouco mais.
Acordou com Assobio lambendo sua boca. Decidiu não se deixar ser ignorada a
partir de então. Seguiu viajem rumo ao sem rumo.
A
estrada era larga, sem construções nem pessoas, com o horizonte para onde
sequer que alçasse sua visão, estrada de chão bruto com muitos pedregulhos nas
beiradas. Alguns destes ela recolheu em sua trouxa. Nunca houvera sentido o que
sentia por ora. O vento não fazia parte da rotina de seu quarto. Nada ali fazia
parte. Quando muito reconhecia algo dos velhos livros da Fátima. E começara a
falar com Assobio sobre um bom nome para ela.
-
Se você gostar da algum destes, me avisa. – diz ela fitando o cão – Julieta
morreu jovem, você não deve gostar deste... Vejamos... Dorothy! – ela olha para
o cão que continua farejando as moitas – pois é, você tem razão, ela é do mundo
de Oz.
O
silêncio expressa-se em passos largos. Elize continua a pensar em um bom nome.
Mas os nomes que ela conhece já possuem dono. Ela quer uma história sua. Quer
que um dia alguém perca seu livro, quer que outro alguém um dia ache-o e
esqueça-o, quer que a pessoa certa encontre-o, e que esta saiba como foi que as
coisas se sucederam.
-
Vento...
O
som sai tão baixo que Assobio sai do lado de Elize e senta a sua frente com
cara de interrogação.
-
O que foi, Assobio? Gostastes de Vento?
O
cachorro dá um latido único e dispara. Elize entende que este deve ser seu nome
daqui para frente. Assobio corre para fora da estrada principal, por um caminho
menor, com espaço para apenas uma carroça passar. Ao fim desta estrada, ela
encontra o Sanatório Boa Vista.
Ela
sente desconfiança, mas Assobio invade o lugar. Uma senhora de rosto simpático
pergunta em que pode ser útil. A garota explica que não tem dinheiro e está
procurando um lugar para ficar. Merla informa que os dois podem ficar desde que
ajudem no trabalho. Merla pergunta o nome da garota.
-
Meu nome é Vento, e este é meu amigo, Assobio!
Merla
olha desconfiada por alguns segundos. Porém, sorri quando Assobio deita em seus
pés com a barriga para cima.
-
Vento, né? No segundo andar tem uma porta sem tranca. Lá será seu quarto e o do
pulguento. Amanhã te mostro os afazeres.
Vento
vai até o quarto. Havia um colchão no chão, travesseiros e lençóis limpos. Ela dorme
assim que repousa seu corpo.
Após
trabalhar por uma semana no sanatório, Vento e Assobio resolvem colocar seus
pés e patas na estrada. Ao comunicar sua vontade à Merla, a dona leva-os até um
dos quartos com tranca para pagar os dias trabalhados. Quando Vento e Assobio entram
no quarto, Merla tranca a porta.
-
Desculpe, Vento, mas não posso trabalhar aqui sozinha. A varíola está
aumentando na cidade. Logo chegarão mais doentes para morrer aqui. Então você
me ajuda, ou morre junto. Vou te deixar pensar um pouco.
Por
três dias sem água, sem comida e sem banheiro, Vento e Assobio ficaram naquele
quarto pequeno, sem janelas, sem saída. Suas necessidades fisiológicas foram feitas
num dos cantos, e os odores já não eram mais notados pelo olfato dos presentes.
-
Eu trabalho para você até o fim da epidemia. Solte-nos! – grita Vento quase sem
forças.
E
assim ela o fez. O sanatório lotou de doentes. Merla nem sequer chegava
perto das pessoas infectadas, mandava Vento fazer tudo. Embora fosse um
trabalho cansativo, Vento sentia-se útil e realmente importante para aquelas
pessoas. Merla não dava nenhum tipo de proteção para Vento. Assobio era amado
por todos, sempre fazendo seus carinhos, exalando charme entre as macas. Todos
os dias alguém era enterrado por Vento e Assobio. Todos os dias, amigos se iam
e novos chegavam também para logo irem.
Vento
percebeu que estava fortemente gripada. Mas não podia deixar todos lá sem alguém
para zelar por eles. Ela sentia-se na obrigação de dar um pouco de dignidade
nem que seja na hora da morte. Todos os paciente que chegavam lá já estavam com
estágio avançado da doença e vinham dos hospitais das redondezas, com aventais
dos próprios hospitais. Vento não sabia como se pegava varíola, tão pouco sabia
que os primeiros sintomas são idênticos aos da gripe.
Sua
gripe só piorava. Vômitos e alucinações já se faziam instalados em seu corpo.
Certo dia, chega um homem de chapéu, aparentemente saudável. Merla não deixou
Vento atender, pois poderia ser alguma inspeção ou algum rico querendo internar
um paciente psiquiátrico. Vento espiou de cima da escada. Ela conhecia aquele
homem. Mas o que mais lhe impressionou foram suas calças e sua cinta. Ela
urinou-se ali mesmo. Eram as calças e a cinta de seu pai. Vento recordou que
viu aquele rosto no dia que fugira de casa, ao fita-la na porta de sua sala.
Realmente não era seu pai. Ela sentia que precisava fugir.
Enquanto
o homem conversava com Merla, Ventou saiu pela porta que estava entreaberta. A
porta fechou-se. O homem saiu correndo para pegá-la. Na frente do sanatório
havia há pouco um açude que secara e deixara apenas o lodo de suas cheias.
Vento conseguiu empurrá-lo e correu o mais rápido que pudera. Assobio saiu como
um raio acompanhando-a. Na beira da estrada havia um avestruz estacionado.
Vento subiu no avestruz, que guiou-a até muito distante. No meio do nada, o
avestruz para e fala:
-
Acho que daqui você segue sozinha.
Vento
desce da ave e caminha por um acesso secundário da estrada principal. É uma rua
um tanto quanto povoada para estar ali bem no meio de lugar nenhum. Eram
terrenos pequenos de uns dez metros de frente cada um. Cada terreno continha
uma casa diferente e extremamente arrumada. O natal deveria estar próximo, pois
até a rua estava enfeitada. A noite caiu brutalmente. Todas as casa tinham
luzinhas natalinas, e tinham também umas palavras escritas em luz. Vento andava
vagarosamente pela rua, sorrindo. Assobio seguia sua amiga, com medo.
-
Céu do sul... céu do amanhecer... céu do noroeste – Vento seguia a ler as luzes
– céu do leste... céu dos tropeços... céu da discórdia... céu do sono... céu do
sudeste...
Ela
continuava lendo, lendo e lendo. Parece que procurava por uma frase em especial.
Até que estagnou na frente do único terreno que não tinha uma casa. A palavra
de luz desse terreno era “céu”. Isso mesmo. Era só “céu”. Assobio chorou, mas
deixou Vento ir. Da rua via-se o terreno vazio. De dentro, via-se a rua vazia.
De dentro, via-se todos os que se foram, via seu pai, sua mãe, até a Fátima.
Enfim, não ignoraram-na. Vento encontrou um céu para ser livre.