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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Nevoa e sangue - Theodore

     Avistaram a ilha em meio a neblina. Era uma do trio das ilhas proibidas ao público que passou a ocupar o resort da universidade. Segundo acreditava Lucke, o marinheiro de poucas palavras, a menos perigosa. Ele havia dito que seria a única que se aproximaria. Ficava mais afastada da praia de Galvo, lar do gordo ancião, que por algum motivo impunha respeito nos subordinados do resort. Ao que parecia, nem tanto assim, pois bastaram alguns poucos presidentes para convencer o barqueiro a levá-los a uma visita clandestina. Longe dos olhos de águia de seu empregador, Lucke sentiu-se a vontade para infringir suas ordens.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

3:33 am

A coruja está me olhando.
Não estou entendo,
já nem sei mais no que estou pensando.
Não sei o que está se passando
ou porque ela está entrando.
Vem chegando,
me tocando,
me abrindo a mente.
Foi tudo tão de repente.
Ela engana,
ela mente.
Te surpreende.
Invade o quarto e leva a gente.

(Baseado no filme Contatos de 4º Grau)

Heterocromia - Anka


Anka Anu Allen. Este é meu nome. Nasci em Brisbane, cresci em Brisbane, apaixonei-me em Brisbane. Por muito tempo quando criança quis ser taxista. Eu achava o máximo me pagarem para ficar dirigindo pela bela Brisbane, conhecendo novos lugares, pois até os mesmos lugares são sempre novos por lá, conhecendo novas pessoas, novos sotaques, novas histórias. Muito me imaginei ouvindo histórias de viagens, de safáris, de "como me tornei um paraquedista"... Sempre fui boa em inventar histórias, e isso alimentou meu sonho de ser taxista por bastante tempo. Quando eu estava no ensino médio, convenci-me que ser taxista não era uma coisa muito sensata de se desejar, pois não haviam obstáculos suficientes, era só ter uma carteira de motorista e carro legalizado. Escolhi então ser professora. Por algum tempo pensei e repensei em ser professora de quê? Dar aula para os pequenos? Para os adolescentes? De matemática, português, literatura... Ah, literatura! Podia sentir romances brotando de meus dedos! Mas no dia da inscrição para o vestibular, mudei de ideia. Inscrevi-me para Licenciatura em Biologia. Não sei por que fiz isso. Mas também não me arrependi por um só dia. Na biologia encontrei todas as histórias de aventura que eu precisa para me sentir viva. Quando me formei, ser professora apenas não me bastava. Me formei também em bacharelado. E continuei no mestrado em Oceanografia Biológica, que já concluí, e doutorado em Sistemas Costeiros e Oceânicos, que estou pesquisando ainda. Para mim, chegar aqui, nas intocadas e místicas costas de Milne Bay é um privilégio novo e não projetado como real.

Lucke, nosso taxista dos mares, logo de início levou-nos para a Ilha de Ito. Gostei do nome da ilha. Gostei mais da ilha. O lado nordeste tinha uma encosta de floresta densa, sem praia, com pedras e profundidade. O lado oeste, havia um rio de cor azul escuro que desembocava no oceano transparente. O encontro das águas gerava um habitat perfeito para o desconhecido. Ali convenci Magda a armarmos acampamento. Nossa equipe era composta por quatro pessoas: Magda que era a professora chefe, e eu, John e Yani, pesquisadores.

À noite, fizemos um jantar onde Lucke nos forneceu alguns peixes. Quando estávamos em volta da fogueira, o taxista dos mares me chamou a atenção. Sua forma de olhar aficionado para o brilho do fogo me fez imaginar quais histórias ele guardava sob aquele chapéu e aquela cara de mau. Sobre seus traços, não posso dizer que era o mais bonitos dos homens, mas digamos que seus traços lembram o Ben Affleck, um Ben Affleck com barba errada, surrado do sol e da vida, e com uma expressão confusa de "onde estão minhas chaves?" misturada com "esses estudantes riquinhos não sabem onde estão se metendo". Não sei se taxista dos mares é o melhor apelido que posso dar-lhe. Talvez pirata de Milne Bay fizesse mais jus aos seus mistérios.

- Por que você está aqui, Lucke?

Pensei por um segundo em repetir a pergunta um pouco mais alto. Antes de eu criar coragem de fazer isso, Lucke vira o rosto em minha direção, sem mudar a expressão do rosto. Pude ver tristeza em seus olhos ainda com o reflexo das chamas. Encarou-me por alguns segundos, e volveu a admirar a fogueira, como antes. Percebi que conversar não era um ponto forte do nosso amigo. Eu poderia tramar um milhão de possibilidades por ele ter me visualizado e ignorado, não que não tenha feito isso, porém forcei meus pensamentos a outras coisas.

Conversei um pouco mais com Yani até os peixes ficarem prontos. Yani cursou Oceanologia na Universidade de Adelaide, sua cidade natal. Éramos bem parecidos eu e ele, não só pelo amor ao Pacífico, mas também por nossos traços. Sua pele morena escura, seus olhos cor de mel, estatura média, cabelos castanhos médios cortado curto. Diferíamos principalmente pela cor dos olhos. Eu tenho heterocromia setorial, isso faz meu olho esquerdo ser verde-azulado, e meu olho direito ter uma "pincelada" cor de mel.

Depois de comermos, aos poucos as pessoas foram se direcionando para suas barracas. Ainda estávamos sentados quando Lucke resolve falar comigo.

- Eu não sei a razão de eu ainda estar aqui.

Nesta hora percebi que talvez ele não fosse tão mal como aparentava ser. Só está confuso consigo ou tem déficit de atenção. Se bem que é mais provável ele estar apenas confuso e deslocado. Meus pensamentos são cortados pela voz grave de Lucke.

- Como você conseguiu essa cicatriz no pé?

Surpreendida com essa pergunta superficial que foge dos conflitos, percebi que minha postura esta horrível. Melhorei a coluna, juntei os joelhos, coloquei ambas as mãos sobre as pernas, olhei para Lucke. Dessa vez tive certeza do que ele pensou: "Que garota estranha!".

- Essa é minha cicatriz preferida. Fiz ela com 6 anos e 3 meses. Meu pai me deu um canguru chamado Elvis de presente de aniversário. Viramos muito amigos pois o criava solto. Na verdade eu nem o criava, ele ia me visitar quando queria, leia todos os dias, e brincávamos juntos. Depois de três meses de amor entre nós, estávamos correndo como sempre, e tropecei numa pedra. A pedra fez um machucado bem feio sobre meu pé, que até hoje me resta boas lembranças do Elvis, das mandingas da minha mãe e da nossa mudança para o centro de Brisbane.

- Bastante coisa para um machucado, você não acha?

- Realmente foram mudanças que já estavam para acontecer, pois eu logo entraria para o colégio... E o machucado rendeu também uma quebradura desse pé.

- E por que sua mãe fez mandengas em você?

- Mandingas! - risos - Minha mãe é de origem aborígene, as crenças do povo dela são muito fortes nela. Então, enquanto meu pai não chegava para me levar ao hospital, fui submetida a procedimentos que ainda não compreendo. Foram folhas de árvores, escamas de peelii peelii, seiva de plantas. No fim, sobrevivi a minhã mãe, e meu pai me levou para o hospital.

- Você fala com um certo desprezo dos conhecimentos dos nativos. Por que veio para cá?

- Para entendê-los.

Luke olhou nos meus olhos nesse momento. Não sei se estava percebendo minha heterocromia ou se estava querendo me intimidar. Conseguiu apenas um boa noite com seu olhar 43.

- Boa noite, Anka. 

Entrega especial - Lucke

     O barulho do motor do avião tornou-se mais nítido a medida que se aproximava. Estava em alto mar e o sol mal espiava pelo horizonte azul quando Lucke distinguiu a aeronave. Tinha ensaiado um malabarismo com os sinalizadores, mas resolveu continuar no padrão, para não correr o risco de confundir mais o piloto. Já estava em um barco diferente do usual, por que forçar mais estranheza? 
     O bimotor deu um rasante, passando a uns 10 metros da embarcação. Lucke observou-o se afastar e dar a volta, dessa vez passando um pouco além do barco e largando uma caixa no mar. Esperou o avião seguir seu rumo de volta de onde surgira. Enfim, acionou a alavanca que recolheu as redes de pesca. Desceu a caixa no convés e amarrou-a seguramente em um canto. Entrou na cabine e rumou de volta ao porto. 


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Diário de bordo - Lucke - Dia 1

     Certo. Não sei o que estou fazendo aqui. Fazem 9 anos desde o incidente... Estou procurando respostas? Será que ainda não superei isso? Meu pai largou isso de mão faz muito tempo. Mas acho que nunca esqueceria de fato. Talvez tenha resolvido aceitar. Eu não sei. Ele me deu o barco. Nada muito espalhafatoso, um pesqueiro modesto, mas bem cuidado. Desde aquela noite... Meu pai não comenta muito sobre aquilo. Eu estava lá, vira tudo com os próprios olhos. Por que haveria de discutir? Ele nunca acreditara em monstros marinhos, sempre dizia que havia coisas demais pra se preocupar somente no tangível, será que aquela noite o mudara?
     Nove anos antes, estavamos velejando de volta à capital. Tivemos uma boa sorte e nosso porão estava cheio de pescado. Tio Pierre e meu pai na cabine e minha tia e mãe no dormitório do porão. Lembro de os dois estarem discutindo sobre o trajeto e a tempestade que tentavam delinear.
     - Se aquele farol for o da Ilha do Vale você é um péssimo navegador - dissera seu pai ao irmão.
     Tio Pierre fez algum comentário zombeteiro como de praxe. Lembro da idéia que tive ao olhar pela escotilha. Estava muito escuro lá fora, se caissem na água teriam como saber onde era alto e baixo? Resolvi perguntar a minha mãe, ela por algum motivo gostava que eu lhe levantasse esse tipo de questões. Não sei se cheguei a perguntar, não lembro se recebi uma resposta. Lembro quando levantei para descer ao dormitório e de tio Pierre dizer-me:
     - Cuidado, Lucke. Com esse tempo não temos como pescar um peixe do seu tamanho.
     Lá embaixo as duas mulheres conversavam sobre qualquer coisa, quando o barco deu um solavanco. Detrás da porta para o porão de carga ouviu-se o barulho de algo pesado se movendo. A porta se escancarou e o chão foi coberto com centenas de peixes. Tia Sara disse um palavrão e correu ao pequeno banheiro para tentar limpar seus sapatos novos. Minha mãe estava descalça e de macacão e se limitou a rir e pedir que eu chamasse meu tio para ajudar a limpar aquilo. Obedeci, mas quando chegamos ao porão ela não estava ali. Minha tia continuava no banheiro, murmurando xingamentos sobre sapatos e o chão estava se enxendo preguiçosamente de água. Um fino rastro de sangue seguia pela porta, entrando no porão. Lá dentro, a comporta por onde a carga era descida do convés estava aberta e pingos grossos de chuva batiam nos peixes expalhados no chão, fazendo alguns se debaterem. Tio Pierre subiu a escada de metal em direção ao convés, mandando que eu fechasse a comporta quando ele passasse. Com isso feito, corri ao convés pela escada do dormitório.
     Lá fora, os refletores mal garantiam um pouco de luz a iluminar as duas pessoas perto da amurada do navio. Minha mãe estava sentada com as pernas balançando por sobre o mar e tio Pierre levantava as mãos como quem se aproxima de um cão sem querer assustá-lo. Aproximei-me e vi, minha mãe sorria. Um sorriso cheio de dentes, seus olhos brilhavam com a luz do navio. Pierre chamou-a, com o medo se fazendo sentir na voz. Ela pareceu notá-los ali.
     - Conseguem ouvir? - perguntou, maravilhada - Lucke! Ouça-a cantar!
     Meu pai guiava o barco alheio àquilo, cortava as ondas normalmente. Uma dessas ondas causou um violento solavanco. E no instante seguinte ela mergulhou. Não sei se ela faria aquilo de um jeito ou outro. Só sei que meu pai se culpou por isso. Passamos o restante da noite dando voltas, procurando por minha mãe, e um bom pedaço do dia. Eles largaram minha tia e eu no porto e voltaram imediatamente. Quando retornaram novamente a carga já estava quase estragada pelo mal condicionamento. Meu pai passou os dois anos seguintes procurando, chegando a beira da falência pelos recursos investidos sem recursos. Deixou o barco âncorado e a mim cuidando pra que não se desmanchasse em abandono. Há sete anos não pisa mais no Máscara Azul. Há dois dias ele o deu para mim...
     Comecei esse Diário de bordo e nada falei sobre o dia de hoje. Desde ontém tenho levado pessoas da universidade até as Ilhas do Vale, também tenho trabalhado de guia local. Há mais ou menos um ano me mudei para um pequeno casebre na praia do Galvo e tenho vivido como um habitante. Conheci muito da natureza rica daquelas ilhas. A tribo nativa não é muito receptiva e ficaram meio nervosos quando viram meu barco se aproximar. Consideravam-se os donos daquela terra, o que eu não chego a discordar. O que diriam se soubessem dos homens da capital que venderam suas ilhas para a universidade? Expliquei ao chefe que não me aproximaria sem a autorização dele de nenhuma de suas ilhas sagradas, o que pareceu amenizar sua carranca habitual. Eu dei minha palavra... Mas guiando esses esnobes estudantes por aí... Quanto tempo demorariam a espiar por detrás de seus narizes empinados notando as ilhas enevoadas? Não levaria ninguém para lá... Talvez pelo preço certo...
     Vim a essas ilhas não com esperança de achar minha mãe. Não, nove anos é muito tempo. Mas o ar desse lugar me faz sentir mais próximo dela. Como uma maneira de não esquecê-la, permaneço.