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terça-feira, 2 de agosto de 2016

Sociedade Instantânea

Em alguma realidade, num tempo não distante. Passado, futuro ou presente. Pequenos humanos eram encaminhados para o Centro de Capacitação da Utilidade (CECAU). De lá, saíam quando atingiam a Maturidade da Utilidade - idade variável para cada indivíduo - para ser unidade de trabalho da incrível Sociedade Instantânea. Também existiam os Inúteis, nome dado aos indivíduos que não se enquadravam ao perfil do CECAU, e por consequência, viviam à margem da Sociedade, quase invisíveis. Quem coordenava a CECAU era uma humana muito bela e racional, de nome Focus. Quando Focus passava entre os corredores frios das salas de capacitação, todos tremiam, capacitadores e capacitandos. Sua beleza em momento algum amenizava a sua imagem de poder e interferência em vidas alheias.

Eduarda estava a poucos passos da Maturidade e logo descobriria onde a designariam como útil. Tinha enorme vontade em ser útil nos hospitais. Acreditava que lá existia uma possibilidade de ajudar alguma vida, de alguma forma mais contemplativa que conveniente. Mas como diria sua mãe “nem sempre se pode ser o que se quer” e a CECAU definiu sua utilidade em ser capacitadora. Eduarda sempre ouviu falar que para ser capacitadora precisa ter nascido para isso, com uma espécie de dom sagrado, proveniente de uma força alheia a sua compreensão. Eduarda nunca foi tocada por Focus.

Outra característica de Focus era o seu poder. Ela carregava nas mãos a incrível capacidade do acreditar. Os muitos humanos que eram tocados por Focus conseguiam ver a magnitude de seus pensamentos de tal forma que não havia outra possibilidade diferente a não ser acreditar nas coisas que Focus via como verdade.

Eduarda, inconformada com sua utilidade, se questiona sobre a autoridade de Focus e sobre a soberania da Sociedade Instantânea.

- Quem conta as verdades em que a Focus acredita? - Se pergunta Eduarda, sozinha.

Sabendo que a maioria das pessoas que conhecia haviam sido tocadas por Focus em algum momento de suas vidas, Eduarda guardou suas dúvidas consigo até ver um invisível. Marco era um homem de pensamento rápido, interrogativo e desconfiado. Fora nomeado como Inútil aos 12 anos de idade quando fazia muitas perguntas aos capacitadores e até a Focus. Focus tentou tocá-lo muitas vezes, sem sucesso. A primeira oportunidade que tivera, fugiu da CECAU. Não muito preocupado com seus rótulos, Marco escrevia e fazia músicas, muitas músicas. Levava a vida com restos de comida e frutas das árvores dos vizinhos. Dormia num barraco junto de outros invisíveis. Eduarda nunca tivera ouvido músicas em sua vida, nem tivera a oportunidade de saber que elas existiam. Seus olhos, tomados por alguma emoção, explicaram a Marco que havia força em sua arte.

- Ser invisível tem suas vantagens. - Explica Marco. - Olhe aquelas pessoas! - Ele aponta para as pessoas que estavam saindo de um grande prédio para o horário de almoço. - Eles tem hora para almoçar, já tem definido o que devem comer, o que devem vestir, o que podem pensar, e provavelmente, um dia, quando sua utilidade não tiver mesma potência, em qual pedaço de terra seus corpos serão enterrados.

- De onde você tira essas palavras? - indaga Eduarda.

- Duda, posso te chamar assim? Eu observo! Sou um observador, sou a dúvida desta Sociedade, sou a prova que não é preciso ser mão-de-obra para alguém ficar rico. Sou a minha casa, a minha comida, a minha música.

- E como você aprendeu essas músicas? Como você fez esta ferramenta de som?

- Isto é um violão! Como o violão não gera renda para alguém, o cara que o inventou foi nomeado como Inútil aos 14 anos. Caetano é um dos invisíveis mais velhos do barraco. Ele é magnífico!

Eduarda permanecia chocada com todas aquelas informações negadas pela CECAU como úteis. Como poderia ser inútil tamanha beleza? E a alegria que emanava daquela sequência de sons poderia ser assim tão facilmente desprezada? Esquecida não seria, ao menos, não mais por Eduarda. 

- O que você acha da Focus? - perguntou Eduarda.

- Tenho pena dela.

- Como assim pena?! Ela faz da vida das pessoas o que ela acredita que é certo, pior, ela faz as pessoas acreditarem que o que ela pensa é certo. Os capacitadores são escravizados por ela. A maioria dos capacitandos almejam ser escolhidos por ela. Acreditam que assim são especiais, que mereceram receber a verdade...
Marco interrompe o discurso:

- Eu sei de tudo isso. Ainda tenho pena dela. - silêncio - Você já se perguntou quem conta as verdades que a Focus acredita?

Sentindo-se em sintonia com aquele invisível, Eduarda entende a tal pena que Marco se refere.

- Sim. Me perguntei isso pela primeira vez no exato dia que te conheci, há 3 meses. - os dois se olham como que se estivessem a descobrir um planeta habitável a ponto de explodir. Ela continua. - Em 65 dias entro em sala, fui definida capacitadora.

- O que você acha disso?

- Acho que sou enfermeira.

- E o que vai fazer?

- Tenho 65 dias para descobrir. Me ajuda?

- Vou ver em minha agenda… Nada para segunda… Nada para terça… Acho que posso te encaixar na terça!

Eles riem. 

- Você é a droga de um desocupado! 

- Sim, só tenho vantagens. Sabe qual a outra vantagem de ser invisível: ser invisível!

De fato, todos os tocados pela Focus, inclusive a Focus, não conseguem ver os declarados Inúteis. Isto permite trânsito livre, ou quase isso. A dupla tramou o plano básico de um detetive: seguir, observar a rotina, ouvir conversas. Com algumas habilidades tecnológicas foi possível encaminhar e-mails e ativar webcams, o que facilitou o serviço. Reuniões com homens e seus ternos alinhados, essa era a vida de Focus. Mas quem eram aqueles homens? Quem seria rico o suficiente para ter ternos com aqueles cortes? 

- Eu acho que conheço aquele ali de terno com riscas. É o dono do Banco Capital!

- O de terno verde musgo eu conheço. Era o chefe da minha mãe. Ele é o dono dos Laboratórios Tento! - diz Marco.

- Certeza que eles todos devem ter sido tocados pela Focus. Entra na sala e escuta o que eles estão conversando.

- Não sei se é seguro.

- Claro que é. Vai ser medroso? Estamos prestes a descobrir o que tem de mais instantâneo nessa sociedade!

- Okay.

Marco saiu do jardim e pela porta dos fundos, entrou no prédio. Na sala de reuniões, entrou atrás da moça que carregava o café. Poucos segundos foram o suficiente para ele entender tudo. Aquele era o grupo que dava as verdades para Focus acreditar! A moça do café sai e Marco permanece ali parado, ouvindo.

- Ajudante, saia com a copeira! - Disse o dono do Banco, para a surpresa de Marco.

- Fique! Você não é o filho da Amélia? Ele é um inútil! Prendam-no! - Disse o ex-chefe da mãe de Marco.

Aproveitando-se da agilidade da juventude, Marco sai correndo do prédio, pronto para contar tudo o que viu a Eduarda e ao mundo. Eduarda não estava mais escondida nos jardins. Onde está Eduarda? 


CRÍTICA DA CRÔNICA SOCIEDADE INSTANTÂNEA

Embebidos em regras enevoadas de conduta de gênero, cor, credo e tempo, seguimos nossas vidas com alguma esperança. Alimentados por um sentimento de segregação, superioridade e por consequência, inferioridade, seguimos nossos acordos sociais diários. Inclusive, na Escola. Partindo do ponto que a Escola que experienciamos hoje segue os erros e acertos da nossa sociedade, podemos afirmar que ela passa longe da skholé que idealiza J. Masschelein (KOHAN, 2015). Guiados pelo artigo Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro, convido-vos a fazermos uma breve reflexão da crônica Sociedade Instantânea, relacionando-a como uma caricatura do sistema de ensino.

No texto, podemos perceber a personagem Focus com uma interessante personalidade, que pouco fala e ao mesmo, utiliza-se de outros artifícios para convencer todos que passam pela Instituição a qual coordena. Estes artifícios vão desde a utilização de seu poder sobrenatural, até outras formas mais sutis de coerção, como seu poder de prestígio e autoridade. Podemos também reconhecer a crença de uma sociedade que privilegia a rapidez como eficiência e mérito, e com isso, ser tocado pela Focus gera uma busca: o alcançar de um status superior. Por outro lado, gera passividade, pois não existem mais questões de dúvidas e pluralidade de pensamentos, e sim, a unicidade de uma verdade. A problemática da crônica gira em torno da insatisfação da personagem Eduarda com sua função de utilidade que não coincide com o íntimo de sua vontade. Esta insatisfação faz Eduarda questionar a autoridade de Focus e por consequência a origem de suas verdades. Neste cenário, Eduarda conhece Marco, um garoto marginalizado pela sociedade por não compreender, aceitar ou se encaixar as suas regras. Os dois cultivaram uma amizade. Elementos comuns à nossa cultura atual como a música e a literatura eram classificadas como inúteis na Sociedade Instantânea, visto que são integrantes do conjunto das artes e não geram retorno financeiro imediato, como, por exemplo, um martelo. À margem, elementos artísticos eram encontrados facilmente, o que potencializou as dúvidas de Eduarda, visto que ela se surpreendeu com tamanha beleza classificada como desnecessária. Até este momento, é possível classificar Focus como a vilã da história, porém Eduarda e Marco descobrem que ela era apenas uma ferramenta de controle dos verdadeiros vilões: os ultra-ricos.

Podemos fazer uma analogia da personagem Focus com o currículo escolar, que por muitos professores e/ou escolas, é encarado como que para ser seguido numa orientação encapsulada da verdade. Com isso, podemos verificar uma crítica aos modelos de educação desde a criação da escolarização, com uma escola e currículo para os filhos dos operários se tornarem bons operários, outra escola e outro currículo para os filhos dos burgueses se tornarem bons administradores. No momento que é feita a decisão do que se deve estudar, escolhe-se diretamente o que não se deve estudar. Nos tempos atuais, tempos de repensar a educação, o currículo ainda se impõe com tamanha autoridade? Será que um currículo único compreende todas as pluralidades culturais das diferentes regiões do nosso imenso país? Quem cria o currículo? As pessoas que criam o currículo atual são isentas de interesses e coerções sociais?

Outra característica a ser observada é a passagem do tempo. Marco disserta que as pessoas classificadas como úteis tinham suas vidas planejadas, no ritmo que a sociedade julga ser justo. Vidas ditadas por Chronos. Antagônico a isso, Marco viveu desde muito jovem à sorte do sem tempo, sem relógio, sem compromissos quantificados por outrem. Aprendeu sem estar numa instituição de ensino, com os mais velhos, os da mesma idade e os mais jovens. Sua classificação permitiu-lhe encontrar o acaso de aprendizagens inenarráveis. Não seria esta a escola de Masschelein? Suspenso do campo social, ele e todos com os quais tinha contato. Profano, a medida que desde jovem questionou o sagrado. Atento aos seus interesses e liberdades, sem buscar uma preparação para um dia viver, e sim, vivendo. E por fim, compartilhando o amor de estar e pertencer a algum espaço-tempo, comum e belo, com seus semelhantes. Como disse Kohan (2015)
“(“Passar-ela: é um prazer não estar, mas estar entre”). Estar entre, uma paixão, um prazer, uma devoção no curso: andar a caminho, entre, nas pontes, nas entrevias, nos caminhos, andar, andar e andar, estar a caminho, estar entre, caminhar entre, educar entre, entre-educar.”
Você pode baixar o texto da referência clicando aqui.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KOHAN, Walter. Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro. In: Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, mar. 2015 / jun. 2015. p. 141-158