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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Vermillion (Rework)

Disclaimer: Esse conto já foi postado aqui antes, mas eu excluí por razões diversas. Agora recoloco com algumas diferenças que o mudam para melhor. Obrigado por ler e curta minha página no Facebook!



Despertou tiritando, coisa que já era comum, quase tão natural que já não se incomodava em se importar. Nas primeiras noites havia tido dificuldade de pegar no sono por causa do frio constante, mas àquela altura já havia se acostumado. Olhou em volta, como que para ter certeza de que nada havia mudado. Tentava avidamente fazer disso um conforto, trazer um sentimento de lar àquele lugar, mas no fundo sabia que isso nunca aconteceria. Barris, caixas e sacos de mantimentos, tudo no seu devido lugar, colocados em volta de uma escada de pedra em espiral para o alto da torre, até o andar da cozinha. De sua cama podia ver a porta de madeira antiga, dura como pedra, e o fato de ela estar selada não cooperava para que se sentisse mais seguro. A floresta era perigosa, mas ele era um evocador. Nenhuma força advinda da escuridão de Kyo, ou pelo menos a maioria, podia se equiparar ao poder de destruição que um usuário de magia podia proporcionar, e só naquela torre haviam três. Mas... como precaver dizia-se ser melhor do que remediar, mantinha-se a porta trancada.


Olhou para a cama do eterno novato e viu-o coberto por grossos cobertores. O garoto chegara àquela torre havia cerca de um ano e dizia que jamais se acostumaria com o clima local. Todo mês, quando o supervisor os visitava, ele perguntava sobre o seu pedido de transferência para o norte e todo o mês o supervisor dizia estar quase arranjando uma vaga. Não sabia dizer se o supervisor fazia alguma maldosa brincadeira com as esperanças do garoto ou se realmente haviam pedidos demais antes do dele. A cama do veterano estava vazia, já que ele estava em seu turno de vigília.
Ele sentou e calçou suas botas. Lembrava do rosto espantado do garoto ao vê-lo levantar-se com tamanha disposição para render o velho. O velho, por sua vez, sempre trocava a guarda dando-lhe um olhar de desaprovação, como se ele fosse um caso perdido ou como se o que ele fizesse fosse algo de errado ou pecaminoso. A verdade era que a vigília era a única hora do dia em que ele podia se sentir quente. Não que o terraço fosse de alguma forma mais agradável que o resto da torre, muito pelo contrário, lá em cima o frio era rasgante. Era possível localizar a torre da floresta, a noite, apenas seguindo o tossir do velho, e o garoto iria gastar o chão lá de cima de tanto andar para lá e para cá, como que correndo do frio. Mas ele tinha sua piromancia para mantê-lo aquecido, e, quando o inverno chegasse, eles talvez o invejariam. No andar da cozinha, mordiscou uma lasca cortada de um grande queijo e mascou algumas azeitonas, antes de subir para o terraço de vigia.
A neblina estava densa, o que não melhorava o humor do velho. Ele o cumprimentou, sonolento e levemente zangado, como de costume. Respondeu para o velho e fitou a neblina. Não se podia enxergar com clareza mais de vinte metros de distancia da torre.
- As vezes me pergunto se nosso trabalho realmente serve pra alguma coisa, sabe?
O velho deu um suspiro cansado, resmungando algo que podia ser um "Pois é". Pegou seu livro e desceu as escadas esfregando os olhos. Como sempre, o velho lhe traria café antes de ir dormir. Apesar de velho e ranzinza, tinha um coração gentil. Assim, debruçou-se na mureta e pôs-se a esperar, como se houvesse coisa mais interessante a se fazer. Passou-se um tempo até que ele ouviu um som de asas. Algum pássaro levantara voo apressadamente. Mas, na neblina, mal se podia enxergar a silhueta das enormes árvores que os cercavam. Estavam localizados em uma "clareira". As árvores eram espaçadas de cinco a dez metros com vinte metros de altura, troncos largos que seriam necessários três homens para abraçar. Nesse tipo de terreno foram erguidas as torres de vigilância. Lugares onde a floresta de Kyo, com suas árvores enormes, largas o bastante para que se pudesse escavar mansões em seus troncos, amenizava. Terrenos rochosos, áridos ou gélidos, onde as plantas colossais não se dedicavam a tomar.
Só deixou de se perder nesses pensamentos quando o velho o cutucou com a caneca de café. Ele a pegou, agradecendo, e notou que o velho trazia uma para si próprio. Debaixo do braço uma tigela com dois pedaços de pão torrado cobertos com geleia de uva, que colocou no parapeito. Olhou para o velho, de sobrancelhas arqueadas, lisonjeado.
- Muitíssimo obrigado - disse, tirando um chapéu imaginário - A que devo todo esse mimo?
O velho revirou os olhos impaciente. Tomou um grande gole de café, fitando a neblina.
- Chegou um mensageiro há algumas horas - pegou uma das torradas e deu uma mordida, um suspiro tristonho logo depois - As suas sempre ficam melhores.
Dessa vez ele revirou os olhos. Depois do inicio da guerra, sua magia passou a ser mal vista, associada a potenciais traidores, mas o velho parecia gostar de ignorar que era por causa dela que eles tinham uma vida mais privilegiada que a da maioria dos vigilantes da guarda de Kyo, já que ele podia prover refeições mais elaboradas com menos esforço. Ele sorveu um pouco de seu café. O velho era modesto, mas ninguém naquela torre sabia preparar bebidas como ele. Em contrapartida, o garoto tinha total controle sobre o estoque, sempre sabia o que lhes faltaria e o qual excedente poderiam negociar com outras torres. Talvez essa harmonia fosse uma das coisas que os impedissem de enlouquecer naquele lugar.
- Noticias da guerra? - perguntou, quando o velho entregou a carta a ele. O velho era um ex-combatente, lutou pela guarda vermelha ajudando a defender Venêria quando a cidade fora atacada, muitos anos atrás. Quando o garoto chegou a torre, o velho se tornou uma espécie de herói aos olhos do jovem rapaz. Ele o cobriu de perguntas e o cobrou histórias de seus feitos, experiências e coisas que presenciara no passado. O velho devia ter adorado aquilo tudo, e aquela altura ele talvez visse o garoto como o neto que nunca tivera. Um dia o garoto havia questionado para ele o porquê de, sendo o velho o primeiro no comando, ele passava as cartas ao segundo no comando. Ele respondera que era porque o velho, em sua magnificência, não tinha tempo a gastar com essas preocupações mundanas. Foi quando ele contou ao velho sobre a duvida do garoto que o velho lhe pediu para que o ensinasse a ler. Tomou aquilo como uma tarefa pessoal, e, havia alguns meses, o velho vinha lendo as cartas primeiro, dando a ele um relatório do que transmitiam. Ele realmente ficou impressionado com o esforço e motivação que seu colega estava fazendo para aprender e se dedicou em igual para que conseguisse.
- Não... Eles disseram pra ficar de olho nas cavernas - disse o velho, apontando com o queixo a montanha além da neblina. Olhou para ele - Como se fosse simples assim.
Ele meneou com a cabeça, provando sua torrada, antes que congelasse. O velho tinha razão, tentando esquentar o máximo possível para que não esfriassem acabou tostando-as demais. Bebeu mais um pouco de café e leu a mensagem. Como o velho falou, as cavernas da montanha estavam um tanto instáveis. Os insetos que as habitavam estavam começando a ficar ousados e já haviam atacado um grupo de patrulheiros um tanto longe dali.
- Insetos tão para o sul? Acho bem difícil, mas... - deu de ombros, entregando a carta ao velho - mostre para o garoto quando ele acordar.
Terminaram de comer e o velho levou as canecas e a tigela para dentro. Ele cerrou os dentes. Agradecia a companhia como uma quebra na rotina, mas o terraço não era exatamente um local para papear. Tirou suas luvas, sentindo o frio endurecer suas mãos. Fechou a direita em um punho apertado, se concentrou e abriu-a bruscamente. Faíscas brotaram e pequenas línguas de fogo seguiram as pontas de seus dedos. Ele aproximou-os e sua mão ficou envolta em chamas. Ele encarou o fogo. Era como se segurasse um pequeno sol. O único sol que veria em meses naquela época do ano. Voltou a sentir seu rosto, o sangue fluindo novamente, voltou a se sentir vivo. Ficou algum tempo assim. Olhar aquelas chamas trazia memórias. Memórias de quando o mundo era mais simples e parecia oferecer mais às pessoas dispostas a procurar. Ele lembrou da deusa do fogo, Derea. Quase podia ver seu rosto através através das chamas, nítido como no dia em que o vislumbrou pela primeira vez.
Demorou uns cinco segundos até perceber que aquele rosto era nítido demais para uma simples lembrança.
- Whoa! - se assustou, perdendo o controle da chama e deixando-a se extinguir. Não podia conceber como ela podia ter sido sorrateira o bastante para escalar a torre e espiar pelo parapeito sem que ele notasse. A garota sorriu quando ele a viu. Sentando-se na beirada, com um movimento tão leve que só seria possível se ela pesasse como uma pluma, sorriu novamente. Ele alisou sua barba inconscientemente, enquanto tentava lembrar se havia uma razão para sua própria existência
- Quem é você? De onde você saiu?
- Alguém não sabe nada da magia verdadeira - disse ela, subitamente séria - Não é digno de saber meu nome, também. Pode me chamar como quiser… Para mim, você parece... Fogo!
Ele não sabia como alguém poderia parecer tão meigo. Sentiu um calor no peito, como se a circulação estivesse voltando. Será que era uma evocação de fogo a nível muscular? Enquanto uma parte da mente dele tentava pensar se isso significava que sua magia estava perigosamente descontrolada, uma outra parte estava distraída em achar um nome para a garota a sua frente.
- Linda... - se ouviu dizendo. Ela pendeu a cabeça para o lado erguendo o sobrolho - Linda - ele repetiu com mais propriedade, e emendou com um sorriso sedutor - Decidi que, para mim, você parece Linda.
Ela corou. Sorrindo disse:
- Eu... gosto desse nome. Obrigada, Fogo.
- E o que a traz aqui, Linda?
Ela virou-se no parapeito de pedra, balançando os pés para fora da torre. Só então notou que ela estava descalça. Mais ainda, usava um macacão de couro e uma camiseta azul desbotada. Em sua mente "Quem ela era?" e "De onde ela vinha?" deram lugar para "O que era ela?". Uma garota com roupas gastas de camponesa, pele tão branca quanto a neblina que os cercava e indiferente à temperatura só podia ser algo sobrenatural. Aliás, era difícil algo não poder ser considerado "natural" em Kyo. Seria uma criatura da floresta? Repassou mentalmente todos os seres de que ouvira falar. Um anjo? Um demônio? Um espirito? Uma ninfa talvez? Não sabia se elas habitavam lugares congelados ou se sequer existiam realmente.
- Aquilo que você fez antes... - disse ela depois de um tempo, cortando-lhe os cálculos geográficos - Estou com frio... Pode fazer de novo?
Ele meneou com a cabeça, se sentindo idiota logo após, já que ela estava de costas para ele.
- Claro - disse. Reencenou o movimento de evocação, vendo que ela o observava por cima do ombro.
Ele se escorou na beirada, ao lado de onde ela estava sentada, estendendo a mão, para que ela pudesse observar o fogo. Ela se aproximou, escorando suas costas no ombro dele, trazendo o braço com a chama para perto com uma mão e brincando com o fogo com a outra, como uma criança com uma vela. Ele riu.
- Não vá fazer xixi na cama depois - esperava algo que mostrasse que Linda não conhecesse esse dizer popular. Isso mostraria que ela ou não conhecia aquilo, afinal dizeres populares não são necessariamente "populares", pois ela poderia morar numa caverna sem contato com essas coisas. Ou que ela morava em uma caverna... mas por razões mais sombrias...
- Eu não tenho cama - disse, soando levemente triste - Não tenho mais.
- Cama? Ela quebrou ou algo assim? - ele se sentiu mais idiota ainda - Quer dizer sua casa? Você não tem mais onde morar?
Ela confirmou com a cabeça, tocando a chama e recolhendo o dedo rapidamente.
- O que aconteceu? - ele perguntou, seu coração rachando de arrependimento logo após, pois ela se afastou dele assim que ele terminou de falar. Linda desceu do parapeito e ficou de frente para ele, de braços cruzados. Os grandes olhos verde-escuros cheios de raiva. Cada vez mais o nome que ele lhe dera parecia mais perfeito.
- Aquelas... coisas! - exclamou ela. Fogo sentiu um alívio por aquela ira não ser dirigida a ele - Vieram rastejando e... cortando. Mataram meus amigos... - a fúria deu lugar a tristeza - O ninho... elas quebraram todos os ovinhos.
Cavernas... Ela realmente devia vir das cavernas. A mensagem lhe veio a mente. Uma palavra: Insetos.
- Eu tentei afugentá-los, mas eu não... - ela olhou para a chama que continuava na mão de Fogo, como se aquilo fosse tudo o que mais ela desejasse e que não pudesse nem sequer tocar.
- Você... - ele lembrou as normas da guarda de Kyo, diziam claramente que nenhum patrulheiro devia deixar a vigília sem autorização - Eu posso ajudar... - não. Não podia. O que estava dizendo? - posso matá-los pra você.
Ela olhou para ele, franzindo o cenho levemente. Mesmo com sua beleza ela lhe despertou o mesmo sentimento. Fogo! Ele era o Fogo! Fogo é errado! Fogo é sujo! Fogo é destruição, o primeiro elemento do Pilar da Lua. Pilar esse que por acaso iniciou a guerra, causando a queda de metade do domínio da Ordem. Trazendo a morte. Fogo! Fogo! Fogo! Tudo obviamente era culpa do Fogo.
Linda arqueou as sobrancelhas, algo em sua expressão a havia assustado. Distraído, ele pressionou o sobrolho com a mão. A julgar pelo sobressalto dela, era a mão das chamas. Ele retirou a mão, dando uma risada cansada. Mostrou que nada havia acontecido em seu rosto e revirou a mão envolta em chamas para que ela visse.
- Não sei nada de magia verdadeira - disse ele - Só sei que é o meu fogo. Ele não ousaria machucar seu mestre.
Ela balançou a cabeça, sorrindo.
- Esse fogo te obedece - disse ela - mas você não é o mestre dele. Não desse aí. Se você não o buscou, ele não é seu.
Linda olhou para a neblina. Levantou sua mão e fechou os olhos. Uma lufada repentina de ar atingiu a torre, fazendo ele se desequilibrar e suas chamas se extinguirem. Ela fez um gesto elegante e rápido com a mão que levantara, como se afastasse uma teia de aranha do caminho. Observando-a, estupefato, quase não percebeu a neblina se dissipando. Viu os últimos vestígios dela sendo afastadas pelo vento e a torre foi banhada com o sol da manhã.
Sem saber como reagir àquilo, ergueu o rosto e fechou os olhos, sentindo o calor natural, sempre pouco presente naquela floresta. Olhou para ela e viu que ela sorria, como que orgulhosa por seu feito.
Eu... - ela conseguiu falar, antes de fechar os olhos e cair para a frente. Ele a segurou, afastou o cabelo claro dos olhos e viu que estava inconsciente. Pegou-a no colo, era realmente muito leve, e a levou para o andar da cozinha. Colocou-a em cima de um grande saco de batatas. Tocou suas mãos, seus braços e seu rosto. Estava gelada. Olhou em volta buscando algo sem saber exatamente o que. Acendeu o fogão a lenha, para tentar trazer um pouco de calor ao ambiente, já que não havia uma lareira, mas o fogo não traria esse resultado de imediato. Desceu as escadas correndo. O garoto e o velho dormiam. Olhou para a massa de cobertores do garoto que estava mais próximo, mas resolveu não arriscar. Pegou sua própria grossa e solitária coberta de sua cama e subiu as escadas, evocando calor a suas mãos para esquentar o tecido.
Novamente na cozinha cobriu-a com a peça e pôs-se a pensar no que faria a seguir. Dificilmente alguém se importaria por ele não estar vigiando no terraço, em vista da situação. Mas sentia-se meio culpado assim mesmo. Pegou uma grande panela, encheu-a de água e começou a preparar uma sopa. Catou algumas batatas que haviam rolado do saco em que Linda estava deitada e adicionou à receita.
Com a sopa pronta, serviu uma tigela e sentou-se sobre os joelhos em frente a Linda. Lembrou-se da evocação que ela fizera. Lembrou de uma conversa de bar que escutara a muito tempo atrás. Entre teorias de conspiração ouviu uma de que os deuses haviam buscado a imortalidade através da dominação de um elemento ao chegarem a Fonte. Talvez o que ela havia demonstrado fosse essa dominação. Isso significaria que ela era uma deusa independente de qualquer Pilar, já que Hoster era o deus do vento oficial.
Ela tinha os mesmos olhos da deusa do fogo. Ela virou o rosto para ele, franziu o cenho e abriu os olhos devagar, sorrindo ao vê-lo. Se aconchegou no cobertor e cheirou-o. Olhou para Fogo, como que satisfeita.
- Tem o seu cheiro - disse.
- Você é uma deusa? - ele sussurrou, ainda chocado com a possibilidade.
Ela sorriu, estendendo a mão em direção a seu rosto. Ele lembrou do toque que a deusa do fogo lhe dera ao conceder sua magia. Do calor e da dor que havia sido tamanha que perdera os sentidos com o chão subindo de encontro a sua face. Mas o toque de Linda foi suave. Ela roçou os dedos na barba de Fogo, num gesto de afago.
- É bonita. - disse ela - Combina com você e lembra seu nome.
Ele riu, recompondo-se. Ser ruivo era um pouco incomum nas cidades da Luz e, como ele não demorara a perceber, era bastante associado a usuários do elemento fogo. Mas o que mais o impressionava era que nunca havia conhecido um único ruivo que quebrasse o estereótipo.
- Eu cuido bem dela - respondeu - Não há mais muito o que fazer por aqui.
Ele ofereceu a tigela de sopa para ela, que aceitou com um sorriso que se abriu mais ainda depois de cheirar seu conteúdo. Fogo não teceu nenhuma palavra enquanto ela comia, para não forçá-la a falar de boca cheia, temendo irritá-la. Observou, então, Linda em sua encantadora etiqueta, portando-se como se a modesta sopa fosse um requintado prato servido no banquete de um rei.
- Você cozinha muito bem - disse ela, ao terminar, motivando um sorriso semi escondido atrás da barba de Fogo. Vendo isso ela lhe deu um olhar maldoso - Parece até uma dona de casa.
Ela pareceu admirar-se dele rir.
- Posso garantir que cozinho melhor do que muitas por aí.
Ela fez que não com a cabeça e percorreu a cozinha com o olhar.
- Esse castelo é seu?
Ele riu. Imaginou a torre de vigia vista de fora. Era robusta e, de certa forma, imponente. Apesar de apenas três andares era bem alta, com cerca de vinte metros de altura e uma porta de madeira respeitável e um fosso. Se para ela aquela tosca pilha de pedras era um castelo, o que diria do forte do lago, com seus doze andares?
- Meu reino se restringe a esse aposento, milady - fez um gesto amplo com a mão à sua volta, depois apontou as panelas e utensílios pendurados nas paredes - e esses são meus fiéis súditos.
Ela riu, depois seu olhar vagou na colher em sua mão. Ficou pensativa por algum tempo, até que ele lembrou do que ela havia dito sobre sua cama.
- Você perdeu sua casa, não é? - de novo aquilo? Era proibido aos patrulheiros levar pessoas sem autorização para dentro das torres, que dirá uma criatura da floresta que talvez fosse uma deusa. Mas ele queria ajudar - Não me é permitido trazer... estranhos aqui. Mas...
Ela o observou, uma certa surpresa no olhar. Sorriu.
- Eu vou procurar um lugar aqui perto para ficar. Não precisa se preocupar.
- Ah - sentia-se imensamente aliviado e ao mesmo tempo decepcionado - Tudo bem - recolheu a tigela e colher e levou até a pia - Saiba que será bem vinda ao meu humilde castelo sempre que quiser.
Ela concordou, dizendo que não haveria lugar melhor a se visitar. Conversaram mais uma hora. Ele descobriu que ela não comia carne, mas não parecia se importar de outros o fazerem. Era a realidade da natureza, como ela mesma afirmou. Ela se interessou em cada detalhe do "ser patrulheiro", desde o que faziam, porquê e como. Ela admitiu nunca ter penetrado na floresta de Kyo mais do que o necessário, já que não havia muita coisa que ela pudesse querer na floresta, mas que iria começar a explorar. Quando ele lhe questionou sobre onde ela moraria, já que os insetos a haviam expulsado da antiga casa, ela insistiu que daria seu jeito, sem entrar em mais detalhes. Sobre as roupas de camponesa, admitiu terem sido um presente, e nenhuma informação a mais. Na verdade, entrava muito pouco em detalhes e de vez em quando dizia que não podia dizer mais do que aquilo. Intrigado ou não, Fogo teria que conviver com suas questões. Por fim, despediu-se com um beijo no rosto de Fogo e uma promessa de que voltaria.
Fogo voltou ao terraço para vê-la pular graciosamente pelo parapeito como se a altura não fosse nada. Viu Linda correr pela grama com a leveza de um esquilo e desaparecer floresta adentro.
O restante do dia foi um misto de monotonia e ansiedade. Fogo suspeitava de que apenas se visse uma estrela cair do céu se sentiria menos entediado. E elas demorariam sequer a aparecer. Assim, as horas passaram e Fogo não conseguia filtrar um pensamento que não girasse em torno da garota da floresta. O sol iluminava as copas das árvores, sem alcançar mais da metade da torre, quando o garoto emergiu da cozinha, fatiando uma pera com seu inseparável canivete. Ele adquirira uma sublime habilidade de usar o objeto mesmo de luvas de couro. Foi até Fogo, perto da mureta, e ofereceu um pedaço da fruta, que ele aceitou. Não tinha percebido o quanto estava faminto.
- Obrigado. Estava tão divertido aqui em cima hoje que eu esqueci de comer - disse Fogo - espero que ainda tenha sopa.
O garoto deu de ombros.
- Deve ter um pouco ainda, mais fria que a bunda do próximo que precisar usar o banheiro hoje - riu - Se queria sobras não devia caprichar tanto.
Fogo riu, sentindo-se um pouco nervoso. Por algum motivo não queria contar sobre Linda. Algo em seu peito. Talvez não fosse necessário que nenhum deles soubessem por hora.
Assim, não falou sobre a garota que conhecera. Nem naquela tarde, nem depois das outras nas quais ela voltara para vê-lo. Durante vários dias se encontraram. Ela contava de suas descobertas explorando Kyo. Contou de quando conversara com a árvore com face, fazendo Fogo ter de disfarçar o alívio quando reclamou da árvore não ter lhe respondido. Maravilhou-se com o jardim suspenso e suas flores multicoloridas. Como ele havia previsto, ficou boquiaberta com o forte do lago. Ademais, Fogo a recebia todas as vezes com alguma refeição quente e suas chamas para se manterem aquecidos e ela se despedia aquecendo-lhe a bochecha com um beijo gelado, que ele mantinha a esperança de um dia ficar mais atrevido. E isso não tardou a acontecer.
Ela sentou-se no parapeito, como de costume ela saltaria, aterrissando com a leveza de uma borboleta para voltar à floresta, mas lançou-lhe um olhar malicioso. Ele aproximou-se com um sorriso sedutor. Se divertia de pensar naquele rotineiro beijo de despedida como um pagamento pelos seus serviços prestados. Sentia-se quase uma prostituta, e, bizarramente, sempre sorria com essa analogia.
- Você vem em busca do meu calor - disse ele - Da minha encantadora companhia, da minha maravilhosa culinária e quase não resiste perante minha beleza e petulância - ela riu - Mas podemos concordar que é basicamente pelo calor.
Ela acompanhou-o com os olhos enquanto ele se aproximava da pequena fogueira que passou a manter acesa. Estalou os dedos e uma pequena chama saltou para a ponta de seu indicador. Fogo a levou até Linda, próximo o bastante para ver o brilho refletido nos olhos verdes, e levou a chama aos próprios lábios, apagando-a. Pensara nisso muito. Com aquele papo de magia verdadeira, sua mente dava voltas com maneiras de aquele seu teatrinho ser mal interpretado, mas se viu fazendo assim mesmo. Felizmente, ela sorriu, inclinou-se tocando-lhe o rosto e fechou os olhos.
- Partilhemos ele, então - sussurrou a garota que Fogo conhecida por Linda. E assim ele pode sentir a maciez de seus lábios. Seu gosto. Sua ternura.
O beijo podia ter durado de poucos segundos a alguns séculos, ele não sabia. Mas quando ela saltou e correu para a floresta ele sentiu como se a torre ficasse mais fria e a sua volta as coisas ficassem mais escuras. Aproximou-se da fogueira no centro do terraço e apoiou as mãos na base de pedra quente. Ergueu os olhos para a porta das escadas e viu o velho. Seus olhos brilhando com o mesmo assombro e desprezo de quando vira Fogo evocar suas próprias chamas para se esquentar. Como se o houvesse pego fazendo algo terrível e imperdoável. Como se Fogo estivesse vendendo sua alma a Emedor. Ou como se ele estivesse apaixonado por uma criatura da floresta.
- Eu... - tentou se explicar, mas o velho o cortou com um gesto ríspido. Como da outra vez, não iria comentar sobre aquilo. Talvez se sentisse velho demais para colocar sua desaprovação em palavras. Ele não sabia. O velho voltou para dentro da torre. Um tempo depois o garoto veio cumprir seu turno. Fogo desceu as escadas cabisbaixo, sentindo a pressão que as palavras engolidas faziam na garganta.
    Alguns dias depois. Linda estava ajoelhada no chão, soluçando, abraçada a si mesmo. O velho puxou-a pelos cabelos com força, para que levantasse o queixo. Ela gritou de dor. Ele levantou a mão livre e garras de gelo projetaram-se de seus dedos, cruelmente afiadas.
- Não! Por favor! - Fogo suplicou, com a voz falhando.
- Matar monstros! - respondeu o velho, com os olhos cheios de ódio - É isso que patrulheiros fazem!
Fogo correu, mas estava muito longe. Em um movimento o velho rasgou o delicado pescoço de Linda, largando-a em seguida para que se afogasse em seu próprio sangue, tremulando numa poça negra como vinho. Fogo chegou nela apenas para ver a vida se esvair dos grandes e verdes olhos que aprendera a amar. Prostrou-se ao chão, com um grito de desespero, agarrado a si mesmo, sentindo um ódio crescer em seu peito. Sentindo o calor crescer exponencialmente. Sentindo seu poder fluir, como se pudesse atear fogo ao mundo.
Acordou tremendo e coberto de suor, a cama quente, como se estivesse deitado em brasas. Sentou-se e apoiou as mãos no rosto. Estavam quase insuportavelmente quentes. Concentrou-se nessa dor.
- Controle - murmurou entredentes - Controle. Controle. Controle - repetiu.
Era só um pesadelo. Não podia perder a cabeça e arriscar um incêndio na torre por uma coisa dessas. Olhou em volta, pairando os olhos sobre o velho que dormia tranquilamente em sua cama. Haviam se passado quatro dias desde que o velho vira Linda, e continuava sem dizer palavra sobre o acontecido. Agindo como se não houvesse visto nada, mas lhe lançando olhares condenadores quando achava que Fogo não estava vendo. Aquilo ia acabar enlouquecendo-o. A torre nunca antes lhe pareceu tão escura e fria como naqueles dias. Foi até uma bacia e jogou a água gelada no rosto e nos ombros. Calçou suas botas e vestiu seu casaco mais quente. Subiu as escadas e se deparou com o garoto, que tentava derreter a própria caneca de café no fogão. O garoto o olhou, como uma criança pega fora do castigo. Fogo achou que sua carranca não contribuía para passar que não havia problema e tentou esboçar um sorriso. Se nem o maldito velho reclamava de quem dava uma pausa na vigia para recuperar a sensação das bochechas, ele que não iria fazê-lo.
- O-o que está fazendo? - perguntou o garoto, entredentes, quando Fogo catou uma garrafa de vinho, que tinha comprado havia um ano e vivia tentando pensar que ainda estava meio cheia, e continuou a subir para o terraço - O sol se pôs não tem t-três horas. Seu turno ainda vai demorar.
- Vou caminhar um pouco - respondeu - Volto antes do sol nascer, prometo.
- Vai sair d-da torre? - perguntou, confuso. Fogo fez que sim com a cabeça, continuando a subir.
Já no terraço, olhou para o céu. Não se via a lua e as copas das árvores fora da clareira impediam a pouca luz das estrelas de penetrar no resto da floresta. Espiou por cima das ameias. Uma altura e tanto para quem não tinha o poder do vento e carregava uma garrafa de vidro. Empurrou a escada de cordas pela beirada e desceu. Saltou por cima do poço que defendia a torre, tentando não pensar nos espetos do fundo, e caminhou na direção da borda da clareira. A escuridão parecia querer engoli-lo. Sentiu-se extremamente pequeno e vulnerável. Mas também se sentiu livre. Fora do ar opressivo da torre estava longe de qualquer problema, de qualquer responsabilidade.
Respirou profundamente o ar gelado e sentou-se nas raízes da grande árvore mais próxima. Passou cerca de uma hora curtindo o vazio que a escuridão e o álcool lhe traziam à mente até o seu ápice, quando Fogo calculou ser próximo da meia noite. Foi então que um arrepio percorreu seu corpo e o frio cravou-se em seus ossos. Olhou na direção da torre e viu uma pequena luz provinda da tocha que o garoto acendera. Quando achou que a figura no alto da torre olhou em sua direção, conjurou uma chama, acenando-a para ele, pra mostrar que estava bem. Olhou para as chamas por alguns instantes mais, até o frio deixá-lo e ele decidir ser hora de regressar.
Quando começou a se erguer caiu sentado novamente, o coração disparado. Por uma raiz ali perto escorregou Linda, os olhos brilhando na luz das chamas quando se aproximou. Sua pele alva se destacava no breu, fazendo com que parecesse um fantasma com um sorriso de dentes muito brancos. Ela caminhava com os pés descalços na grama com a elegância de um felino. Parecia confusa, mas satisfeita.
- Assustei você? Desculpe - disse ela, de uma forma que ele quase se sentiu bravo com o próprio coração, que saltava inquieto no peito.
- Ah, não. Eu... - se perdeu em seus pensamentos. Nunca havia visto Linda a noite, já que seus turnos eram sempre de dia. A luz de suas chamas lhe dava uma aparência assustadora. Vê-la, assim, tão a vontade, em meio a floresta escura parecia evidenciar o quanto aquela garota era sobrenatural. Tomou súbita consciência de que o que corria em suas veias era um doce aperitivo para centenas de seres que habitavam aquela floresta. Ergueu a gola do casaco inconscientemente, como se aquela camada de couro fosse proteger seu frágil pescoço de humano.
Ela riu. Uma risada graciosa, como tudo o que fazia, que acalmou Fogo.
- O que está fazendo aqui fora tão tarde? - perguntou ela, lhe dando um olhar malicioso em seguida - Veio me ver?
- Pode ser - ele sorriu - Estava meio triste e ver você sempre me alegra.
Ela fez que não com a cabeça, sorrindo.
- Pensei que não pudesse sair da torre. Está fugindo deles?
Ele evitou olhar para a torre.
- Não tem nada que me proíba de sair de lá - olhou para as chamas em sua mão - Mas fugir de vez em quando é divertido.
Linda agachou-se na sua frente, estendendo-lhe a mão.
- Se você acha - seus olhos brilhavam de excitação - Eu encontrei uma coisa na floresta. Quer ver?
Ele sorriu. Aceitou o apoio de sua delicada e fria mão. Um dia lhe daria luvas de presente. Mas naquela hora a ideia de seguí-la floresta a dentro e ficar a sós com aquela garota em meio a escuridão era irresistível. A floresta girou loucamente a sua volta quando levantou-se. Fogo apertou os olhos até a mente se desanuviar. Quando olhou novamente para Linda ela lhe sorria, divertida. Ela o guiou pela mão para dentro da floresta. Ouviu algum pássaro noturno gritar, uma vez e mais outra. O som ecoou em sua mente, o deixando zonzo. Lembrou de sua chama e apagou-a. O fogo atraía criaturas da floresta e, como a bela garota que ele aprendera a chamar de Linda já estava ali, não havia nenhuma outra que quisesse atrair. Ouviu o pássaro mais uma vez, mais baixo, em seguida só ouvia seus próprios passos esmagando folhas e tropeçando vez ou outra. Observou o caminhar de pés decididos a desempenhar o ato de andar com perfeição de Linda, até que se sentiu enjoado. Passou o resto do tempo admirando outras coisas de sua guia. Do movimento hipnotizante de seus cabelos até o provocante balançar de seus quadris. Talvez o álcool em seu sangue ou o entretenimento gratuito o tivesse feito perder a noção do tempo. Já deviam estar caminhando a mais de uma hora quando Fogo olhou a volta. Estava escuro demais e as árvores não permitiam uma visão completa do céu para que estipulasse o tempo. Linda percebeu sua confusão, acariciou seu rosto e deixou que ele envolvesse sua cintura com o braço.
- Já estamos chegando.
Fogo já estava sonolento quando eles pararam. Ficou confuso um momento do porquê.
- Aqui - ela disse num sussurro, depois se afastou de Fogo um passo. Pensou que o chão houvesse se mexido, mas era sua cabeça girando novamente. Aquele vinho era forte. Tinha que lembrar onde o havia comprado. Reuniu um pouco de sobriedade aqui e ali em sua mente, arranjando concentração suficiente para reacender sua chama. Usou-as para iluminar o que havia a frente e viu um muro de pedra cinza. Levou um segundo para entender o que era aquilo. E em um segundo sentiu sua barriga preencher-se de pavor. Olhou para Linda, que o observava satisfeita. Não parecia saber o que acabara de fazer, orgulhosa da sua descoberta. Fogo apagou sua magia quase deixando o desespero consumi-lo. Sentia o gosto do medo em sua língua. Kyo. Linda o havia levado até as ruínas da cidade de Kyo.
- Precisamos sair daqui - cochichou rispidamente, muito próximo ao rosto dela - Agora!
- O que foi? Qual o problema?
- Esse... lugar. Ele é amaldiçoado - ele devia ter dito aquilo a ela muito antes. Como pudera esquecer de avisar da maior ameaça daquela floresta? Pegou ela pela mão e irrompeu na direção oposta ao muro.
- Espere! Fogo!
Ele cambaleou pela floresta. Queria correr, o mais rápido que pudesse. Mas podia apostar que acabaria caindo, e quebrando o pescoço, no mínimo. Assim, vagaram cerca de uma hora. Ela já havia desistido de protestar e simplesmente deixava-se arrastar. Fogo viu qualquer esperança que tivesse tecido enquanto caminhavam dar de cara no muro que surgiu a sua frente novamente. Podia ser outra parte ou a mesma de antes. Não importava. Estavam novamente em Kyo.
- Fogo... - ele a calou ao socar a parede produzindo faíscas.
- Isso - disse ele - fogo - virou-se novamente para a floresta - me siga.
Estava ainda zonzo e sonolento, mas nada o impediria de andar em linha reta. Disparou uma lança de fogo a frente, ateando fogo a grama. Nada o impediria. Assim ele queimou um caminho. Em frente, sempre em frente. Mas não adiantou. Suas chamas bateram na parede de pedra, cerca de uma hora depois. Caiu de joelhos, os braços doendo com o esforço da evocação contínua. Linda tocou-lhe o ombro.
- Sabe como voltar? - perguntou ele, sem olhá-la.
- Desculpe... - disse ela - pensei que estávamos no caminho certo dessa vez.
Ele tirou as luvas. Não havia se concentrado direito, então estavam fumegantes. Devia ter tirado antes de sua tentativa desesperada.
- Se esperarmos amanhecer? - sugeriu ela.
Ele olhou para o céu. Tudo o que viu foi a escuridão. Olhou para a floresta, para o rastro de fogo que ele deixara. As chamas mais distantes pareciam estar em uma névoa negra. Tentou não entrar novamente em pânico, sentindo o medo apertar a garganta.
- Não haverá amanhecer para nós - murmurou ele.
Apoiou-se nas pedras do muro para se levantar e seguiu a parede.
- Há uma estrada... - disse, tentando ignorar sua mente, que insistia em girar - podemos seguí-la.
Fogo não sabia se a névoa negra significava que estavam condenados. Talvez ainda não estivessem sob influência da criatura que todos os patrulheiros temiam. Mas sabia que a segurança da estrada era ainda menor do que vagar a esmo pela floresta. A Sombra. A criatura que, uma vez que a pessoa chegasse as ruínas de Kyo, fazia com que não conseguisse retornar. Topar com ela no meio da floresta era um golpe de azar enorme. Mas na estrada... Na estrada era como apertar as bolas da Sombra e ainda esperar não ser notado, como dissera-lhe um velho patrulheiro embriagado.
Fogo olhou para Linda, que era a imagem da tristeza, lhe seguindo cabisbaixa. Sentiu pena dela. Não era como se tivesse feito por mal. Não é?
Finalmente chegaram a um grande portal de pedra. Saindo da silenciosa cidade havia uma estrada. Não recebia cuidados havia séculos, então era estreita e tomada por mato. Mas era nítida o bastante para que seguissem para fora da floresta. Fogo não esperava que aquilo fosse render em algo. Sabia histórias de patrulheiros que haviam seguido aquela estrada e se viram no portão de Kyo várias e várias vezes. Não importava o quanto andassem ou prestassem atenção, o caminho sempre dava na cidade. Fogo sempre ficou um tanto cético quanto aquilo. Qual a dificuldade de seguir uma estrada apenas em uma direção? Também sabia dos patrulheiros que haviam desaparecido. Não se sabia se era por causa de Kyo. Mas os que voltavam pregavam que o segredo era não entrar na cidade. Só haviam escapado das ilusões da Sombra quando encontraram um outro patrulheiro enviado para resgatá-lo. Ao que parecia, uma segunda pessoa facilitava o processo. Nisso, pelo menos, esperava que Linda lhe desse vantagem.
- Vamos - disse, estendendo a mão para a garota. Tentou soar mais calmo do que se sentia. Ela hesitou, mas lhe deu a mão.
Seguiram pela estrada de mãos dadas, como se passeassem num bosque. Fogo queria chamar o mínimo de atenção possível de qualquer coisa que espreitasse na escuridão e ter certeza de que seguiam o caminho certo, por isso iam devagar e quietos. Levariam um dia inteiro, mas sairiam da floresta. Assim ele esperava. Mas quando se depararam novamente com o enorme vulto que era o portão de Kyo, Fogo sentiu seu coração pesar no peito. Ficou parado de cabeça baixa, buscando qualquer reconforto no suave e gélido toque de Linda. Tentaram de novo. E de novo. E mais uma vez. Tentaram andar rápido. Calmamente. Com luz. Sem luz. Com raiva. Com desespero. Com otimismo. Mas nada os afastava daquela maldita entrada de pedra, assim como nada fazia o sol nascer. Marcou o grande portão, tentadoramente entreaberto, uma e mais outras vezes, para saber se realmente era o mesmo e lá estavam todas as marcas.
Sentou-se no chão e acendeu uma fogueira com os galhos que ali haviam em abundância. Linda sentou-se de frente a ele, no lado oposto da chamas. Assim ficaram por algum tempo, encarando a luz. Fogo olhou para Linda. Não demonstrava nem um décimo da tristeza ou culpa de antes. Ao contrário, parecia bem tranquila, quase alegre. Aquilo deixou-o irritado. Ela pareceu perceber quando levantou os olhos do fogo e lhe deu um meio sorriso animador. Em outro momento ele teria sorrido de volta, mas o que fez foi carregar o sobrolho. Ela lhe deu um olhar tristonho de partir o coração.
- Por que me trouxe aqui? - perguntou, seu tom saindo mais áspero do que planejava. Ela fitou as chamas.
- Queria ficar com você... - disse ela, abraçando os próprios joelhos - você parecia um pássaro preso em uma gaiola.
Ele suspirou, cansado.
- Parece que conseguiu.
Ele levantou-se devagar. O vinho era realmente forte. Sentou-se ao lado dela e encarou as chamas. Fizera a fogueira para facilitar que os encontrassem, ignorando que isso era a coisa mais esperta a se fazer em Kyo. Repassou mentalmente os seres que podiam vir a ser perigosos naquela floresta. Sentia o estômago seco. Havia gastado boa parte de sua aura em evocações desmedidas e agora não sobrara muito poder para dispor em uma luta. Não planejava sair do lugar, então a próxima coisa que emergisse das sombras poderia trazer esperança ou morte. Olhou para Linda. Seu rosto parecia sussurrar o nome que ele lhe dera. Acariciou-o e puxou seu queixo para ele. Buscava um pouco de calor, portanto ficou um pouco decepcionado com os lábios gélidos que encontrou. Mas contentou-se com o que tinha. Concentrou-se na maciez. Na ternura. No...
Um som afiado veio de trás deles, da estrada, fazendo com que parassem imediatamente. Fogo pôs-se de pé tentando fazer os dois olhos superarem a tontura e voltarem a trabalhar juntos. Conseguiu a tempo de ver um vulto se aproximar. Tinha forma humana, mas da mão direita projetavam-se grandes garras. Seu coração apertou quando o velho patrulheiro entrou no alcance da luz da fogueira. Fogo sentiu Linda tocar-lhe as costas. Olhou para ela e viu o medo em seus olhos a encarar o ódio do olhar do velho para ela. Engoliu em seco, sentindo a raiva crescer em seu peito. Ergueu a mão para o velho, que parou na mesma hora.
- Qual o seu problema, moleque? - cuspiu o velho - O que aprendeu nesses anos aqui? O que querem as criaturas dessa maldita floresta?
Ficou na frente de Linda, instintivamente.
- Ela não... Eu... - no fundo não queria admitir, mas Linda era uma criatura da floresta. Buscara todo o tempo provar estar errado, maneiras de pelo menos perguntar a ela sobre a sua origem. Mas acabara por aceitar que aquilo não iria significar nada para ele. Mesmo que não fosse humana, Linda era boa. Sentira isso na primeira vez que a vira. Nunca mataria alguém como ela e não permitiria que o velho o fizesse - Ela não fez mal a ninguém!
- Não? - o velho soltou um riso debochado - Como você veio parar aqui?
- Ela não sabia... Ela só queria me mostrar o muro - lhe ocorreu, Linda não conhecia a floresta - Ela não é de Kyo.
O velho ergueu suas garras de gelo na direção da garota.
- Demônios! - cuspiu a palavra - São todos iguais! Não importa de onde venham. Temos uma missão! Lembra de seu juramento? Livrar o mundo das trevas. Matar monstros!
- Ela não é um monstro! Não é igual a eles! - Fogo ergueu suas mãos em direção ao velho, unindo-as em um triangulo. O velho não conhecia aquele movimento, mas pareceu ter entendido a ameaça. Mesmo assim, sorriu, confiante. Confiança adquirida no campo de batalha, supôs.
- Fogo, me escute. Eu posso provar que ela é igual a eles - disse o velho. Evocou garras na outra mão - Ela sangra do mesmo jeito!
Ele saltou na direção deles com uma velocidade espantosa. O cérebro ainda lento quase o fez hesitar demais, mas o pequeno intervalo lhe serviu para reunir a raiva que usou para proferir a evocação.
- Igne!
Tudo no campo de visão delimitado pelo triangulo de suas mãos irrompeu em chamas violentas, por cerca de cem metros à frente de Fogo. Esperou algo sair do calor furioso. Seus braços tremiam. Baixou-os devagar. Sentia a boca seca. Uma perna pendeu e Fogo caiu sobre o joelho. Estava muito fraco. Algo estava errado. Tremendamente errado.
- O que é Fogo? - perguntou Linda - O que está errado?
As chamas diminuíram aos poucos. Não se via corpo. Não se via forma. As chamas queimavam a relva, a estrada, as árvores. E mais nada. Além disso. Fogo, lembrou. O velho o chamara de Fogo.
- Ele não tinha como saber, não é? - disse Linda - Como podia? Só eu te chamo assim.
Ele olhou para Linda, horrorizado. Ela tinha os olhos fundos e o sorriso que abriu era escuridão. E continuou abrindo até que seu rosto tornou-se apenas sombras.
Ouviu a voz de Linda ecoar em sua mente, muito longe. Sentiu uma raiva do tamanho do seu sentimento de impotência. Sabia que se tentasse outra magia podia cair inconsciente... ou morto. Assim arrastou-se até a pequena fogueira que preparara antes, sentou-se de frente para o portão de Kyo. Estava cercado de fogo, mas se sentia frio. Algo dentro de seu peito estava quebrado. Olhou as chamas e viu o rosto de Linda de relance. Mas podia ser a lembrança da deusa do fogo. Já não sabia a diferenciá-las. Talvez nunca houvessem tido diferenças. Havia sido atraído pela Sombra e suas ilusões o haviam feito ficar exausto. Uma parte de sua mente tentava se manter acordado, reunindo forças não sabia de onde. Se desmaiasse a criatura o arrastaria para dentro de Kyo, pensou. Ao mesmo tempo sua mente girava em torno de Linda.
- Ela não é real - murmurou. As palavras machucavam sua garganta - Eu não posso fazê-la real - algo escorreu de seu olho até seus lábios, era salgado. Fechou os olhos e sentiu o silencio da floresta se sobrepor ao crepitar das chamas - Ela não é real - repetiu - Eu não posso fazê-la real - seu ombro direito ficava mais pesado a medida que o chão se aproximava preguiçosamente de seu rosto. As chamas a sua volta ficaram mais e mais fracas. Seus olhos pesaram. Estava tão cansado.


...


Torceu a tocha apagada na mão, nervoso. Olhou para a escuridão a sua volta. Havia uma boa razão para não se acenderem chamas nas torres de vigia. A luz atraia criaturas. Aquilo sempre o fazia pensar o quão útil era a vigília noturna. O velho já o havia advertido dos perigos que esses caprichos podiam trazer.
- Você não precisa ver, apenas esteja preparado pra lutar, quando precisar - dissera ele, certa vez.
Assim, ele aceitava sua condição e mantinha-se atento e temeroso. Mas seu colega idiota vivia "perigosamente". O velho dizia que ele era responsável o bastante para assumir seus riscos. Mas ultimamente o idiota estava mais ousado e, segundo o velho dissera, o pegara com uma fogueira acesa. Ficara furioso, mas deixou passar. Não podia condenar alguém por querer se aquecer, e talvez não houvesse problema com um pouco de luz no meio do dia... Apesar de que ele já tinha ouvido que a Sombra podia se guiar pelo calor.
Olhou mais uma vez para a floresta. O idiota prometera voltar antes do amanhecer, mas quanto tempo isso significava?
O garoto tocou o suporte da fogueira no centro do terraço. Ainda estava quente da que o idiota havia feito. Estava escuro e ele temia que o idiota não encontrasse a torre na volta de sua caminhada. Ou pior, que a manhã trouxesse a visão do colega espetado no fundo do fosso. Assumiu qualquer risco e acendeu a tocha, colocando-a no suporte cheio de teias de aranha.
A luz foi reconfortante, mas a noite fora do limite que ela impunha pareceu tornar-se mais escura. A luz ajuda a ver, lembrou, mas também pode cegar. Sacou seu canivete. Girou-o na mão como o pai lhe ensinara, havia muito tempo. Esperou, fitando a escuridão. Um tempo depois, viu uma chama surgir na base de uma árvore, no limite da clareira, cerca de cem metros de distancia da torre. Seu colega estava sentado entre raízes grossas, encarando a própria mão envolta em chamas, perdido em algum pensamento. O garoto voltou a girar o canivete, ansioso, sem afastar os olhos do piromante. Passado algum tempo decidiu sair de seu transe e levantar. O garoto girou o canivete, irritado, rápido demais, acabando por derrubá-lo a seus pés. Olhou para ele, sem vontade de juntá-lo. Abaixou-se e o apanhou, colocando-o de volta no bolso.
Voltou sua atenção ao idiota e seu coração parou. Viu ele dar a mão e ser levantado por... Alguma coisa. Congelou perante a visão daquela criatura humanoide envolta em fumaça negra. Sentia o esôfago apertado por um medo gutural. A Sombra conduziu seu colega para dentro da floresta. Ele sabia que devia fazer algo. Mas o que? Paralisado de medo, parecia ter esquecido como se fazia para falar. Com um esforço sobre-humano conseguiu gritar por seu companheiro. Mas o idiota nem sequer olhou em sua direção. Conseguiu chegar até as ameias e gritou novamente, desesperado. Dessa vez o idiota pareceu notar, mas, sem virar o rosto, fez um movimento com a mão e sua chama se apagou. A floresta mergulhou novamente na escuridão e a única luz provinha da tocha no alto da torre. O garoto chamou novamente, com toda a força de seus pulmões. Mas o único som a respondê-lo foi o vento.

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