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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Lançados à sorte (ou azar)



Numa mistura de não poder com desejar, ele a procura.
Não é uma Fuga! - afirma ele.
Não, realmente não é.
Chama-se sintonia.
Os mais experientes chamariam plenitude.
O mais juvenis, safadeza.
Dê você o nome que quiser.

Ela havia dado a ele, num dia qualquer perto do fim de um ano qualquer, uma oportunidade qualquer de criar um bocado de vida com ela. Ela não sabia. Nem ele. Se naquele momento, naquele bar, ele a tivesse tomado por um beijo e tivesse dito uma de suas frases previsíveis e poéticas ao pé do ouvido dela, como agradecer o calor de seus lábios, ela apostaria nele. Apostaria um beijo que ele a roubaria mais um, e mais outro. Ela largaria das histórias que estava vivendo, pois veria como ilusão do momento, e seria ao lado dele, com ele, como um rio em época de cheia. O calor do encontro dos lábios desses dois provocaria tempestade no sertão. O calor deles aqueceria tudo que os cercam. O corpo. O coração. A alma. Os indesejáveis invernos seriam férias de verão dentro daquele quarto. As festas e o gênero musical diferente entre os dois, geraria novas visões e novos conflitos, pois ambos adoram contravir e convencer. Talvez, pelo tamanho do ego deles. Ele fala disso, do ego, de maneira escrachada. Ela, ainda tenta admitir que o tem. No fundo, mesmo sendo diferentes, eles se completam por gostarem de ser um pelo outro. Doar-se com reciprocidade. Eles se encotraram.

Enquanto ela contava para ele sobre o cara que tivera conhecido na semana passada, numa festa estranha, ele continuava a olhá-la, sem ter reação alguma. Eles não tinham nada, só se conheciam há algum tempo, ele não pudera saber o que ele provocava nela, nem ela nele. Dois bobos. Enfim, ele a ouviu em silêncio e perdeu, como já disse antes, a oportunidade de fazer as coisas diferentes.

Os dados foram lançados à sorte (ou azar). Um homem de camiseta vermelha fumou seu último cigarro antes do término do intervalo. O mendigo estranho que habitava aquela rua continuou NÃO aceitando a comida que lhe ofereciam. O cachorro continuou seguindo o mendigo. Os buracos das ruas permaneciam nos mesmos lugares. Os olhos dele, olhos luzeiros, continuavam lá, sentados, calados, escutando sobre um cara qualquer que não era ele, numa festa qualquer que ele não estava. Ela daria um dente para saber o que se passava na cabeça dele enquanto ela falava sem parar. Daria um dente pois o olho de sua cara é míope e não vale tanto quanto sua curiosidade. Eu também não sei o que ele pensou, juro que quando souber, conto aqui para vocês.

Bem, eles se foram por caminhos próximos, mas não próximos o suficiente.

Ela casou com o cara da festa. Ele casou com uma garota com o gosto musical parecido com o dele, que não tinha muito amor próprio, pois todo amor que coubera nela, depositara nele.

Algum dia vou ter saco para contar com detalhes a vida dessa "garota sem amor próprio" depois que casou com esse cara. Não hoje, pois isso precisaria de muita vodka. Na verdade, meu copo está vazio e vou ter que ir enchê-lo. Por enquanto, o que posso adiantar é que a vida tratou de deixar os personagens principais desta história próximos de novo e dessa vez, próximos o suficiente.

Magro?


domingo, 12 de janeiro de 2014

Oito menos um

  Da janela da pequena cabine, podia-se ver o brilho de incontáveis cristais azuis na superfície. Vestígios das falhas tentativas de evitar a catástrofe iminente. Quando o asteróide se aproximara da Terra, os esforços se provaram tardios e a atmosfera do planeta foi praticamente pulverizada com aquela estranha matéria, como veneno na plantação. No caso, os humanos eram a praga e bilhões pereceram.
  Seria egoísmo da humanidade se colocar como principal vítima quando toda a vida na Terra sofreu com o impacto, mas nem os próprios sobreviventes se deram conta de sua sorte. Mutações genéticas imperceptíveis que os livraram da morte por intoxicação pela substância e que possibilitaram uma adaptação radical na vida terrestre.
  Mesmo com toda morte e desolação, o estado lastimável de reconstrução que a humanidade teve que enfrentar, tudo aquilo parecia ter sido deixado para trás e as pessoas estavam se encaminhando para a perfeição, tanto física como filosófica.
  - Mas humanos são humanos... - ele suspirou, olhando pela janela enquanto a estação na lua se aproximava. Na Terra, pessoas ainda morriam, mas não mais por causa do gás. As pessoas sempre pareciam procurar motivos para se matarem.
  Uma sociedade foi montada e leis foram criadas para gerir esse novo sistema. Cidades-fortaleza protegidas de outras toxinas liberadas pelo asteróide e gerenciamento dos recursos não foram capazes de satisfazer todas as pessoas e muitas se rebelaram. Independente dos interesses, guerras ainda eram travadas e pessoas morriam todos os dias.
  Se sentindo quase liberto, afastado finalmente da futilidade humana, ele saiu da pequena nave que já aterrissara. Havia tirado férias e mandado para Terra por um tempo que parecia uma eternidade. No curto período de um mês que passou na 14ª Cidade rebeldes causaram tumultos duas vezes, uma delas com um atentado a bomba contra o capitólio. Mas agora estava feliz por voltar para o que já considerava sua casa, afinal.
  Foi recebido por Bill e Sandra, que monitoraram sua aterrissagem. Os outros cinco trabalhadores da Estação de Pesquisa de Equitarium estavam cumprindo suas tarefas, muito provavelmente.
  Bill era o responsável pela segurança e monitoramento dos setores da Estação, enquanto Sandra era uma pesquisadora de reagentes. Já esperava por Bill, o velho bigodudo nunca deixava alguém entrar ou sair da Estação sem um simpático e cheio de dentes sorriso, que por algum motivo foi substituído por uma mera levantada dos cantos da boca. Mas Sandra não fazia exatamente parte do círculo de amizade dele naquele lugar. Ela era amiga de Ester e Bruno, o lindo casal que na verdade deveria estar ali agora.
  Confuso, cumprimentou os dois. Bill deu um aceno de cabeça e um olhar firme, enquanto Sandra o encarou e pareceu prestes a desabar em lagrimas.
  - O Bruno... ele... - soluçou ela - morreu.
Sentiu um imenso vazio desesperador em seu centro. As lâmpadas brancas pareceram perder o brilho. O ambiente que antes parecia tão familiar e acolhedor perdeu parte das cores, quase mudando para um sépia.
   - Como é? - disse com uma espécie de graça e desolação. Sandra não brincaria com aquilo. Percebeu que estampava um meio sorriso tão idiota que achava que seria capaz de causar câncer em alguém. Apressou-se em desmanchá-lo - O que... o que aconteceu?
  - Não sabemos exatamente, encontramos o corpo ontém de manhã - disse Bill enquanto Sandra esfregava os olhos - Estava na sala de mineração, ele foi... Ah, prensado naquelas máquinas - encolheu os ombros como que pedindo desculpas.
  Mais tarde ele foi ver o ocorrido com os próprios olhos. Bruno estava no chão da sala de mineração, coberto por uma lona branca. Perceber que ele estava por cima das máquinas e em algumas paredes também não ajudava a entender a situação.
  Ele já havia acompanhado o processo de mineração e extração do Equitarium. Consistia em vestir uma roupa amarela de proteção de conteúdos e colocar pedaços de rocha minerados do terreno ao redor da Estação numa pequena esteira. O par de engrenagens dentadas trituraria os pedaços com uma força e eficiência cruel. O resto do processo era mudar o resultado de uma máquina a outra.
  Uma massa de carne podia ser vista na trituradora. Pela observação rápida, Bruno teve o braço direito destruído e por pouco não teve todo o corpo tornado guisado se não tivesse apertado o botão de emergencia na frente da trituradora. Infelizmente, foi contaminado pelo produto que estava extraíndo e morreu antes de poder chamar ajuda.
  Cobriu o corpo de seu amigo novamente e foi procurar Ester. Bruno não tinha parentes vivos e ninguém mais além de Ester e ele para se preocupar com o fim que o corpo levaria. Seria cremado quando Bill terminasse seu informativo e Sandra havia dito que Ester estava trancada e incomunicável no quarto desde que elas encontraram Bruno.
  - Ester? - clicou na campainha da porta do quarto dela, realmente não houve resposta. Pensou um pouco e, depois de mais um pouco de insistência, foi até o quarto de Bruno - Ester? - tentou novamente.
Não houve resposta, em vez disso a porta se abriu e uma mulher se jogou em seus braços. Ele a envolveu e ela comprimiu o rosto em seu peito. Ele ia dizer alguma coisa quando ela ergueu a cabeça sorrindo, os olhos vermelhos e lacrimosos.
  - Foi minha culpa - disse ela, ele podia sentir a tristeza e dor em sua voz - Eu precisava de Equitarium. Eu mandei ele extrair o máximo que pudesse - ela deu uma risada soluçada e esganiçada - Foi minha culpa.
  - É obvio que não.
  Deu um beijo suave em sua testa e escorou-a em seu ombro. Ficaram algum tempo assim. Abraçados em frente a porta do quarto de Bruno, ela parecia apoiar uma mescla de seu peso, sua dor e sua carência nele. Espiou para dentro do quarto. Estava escuro e bagunçado, coisa não natural, portanto Ester deveria ter passado por alguma crise histérica, a julgar pelas roupas  e outros objetos espalhados pelo chão.
  - Vá dormir um pouco - disse, analizando as olheiras da amiga - No seu quarto. Vou dar uma olhada por aqui, ok? - ela ascentiu com a cabeça, desvencilhou-se dele e caminhou lentamente.
  Dentro do quarto ele percebeu que aquilo não era exatamente uma bagunça, havia ordem no caos. Camisas em um lado, calças em outro, objetos casuais em uma pilha, objetos que ele calculou como tendo algum valor sentimental em outra. O quarto em si era no mesmo padrão de todos os outros da Estação, uma cama na perede direita, uma escrivaninha embutida na parede esquerda com um computador e um armário ao lado para roupas e quinquilharias. Um dos pesos estava embaixo da cama, Bruno os havia trazido da Terra e esperara pacientemente que a gravidade artificial fosse devidamente instalada na Estação.
  Não conseguindo pensar em nada mais útil para fazer, ele foi para seu próprio quarto. Sentou em sua cama, com as mãos nos joelhos. Alguma coisa estava errada. Muito mais que errada, mas o quê? Pensou. Pensou mais um pouco, mas já era tarde. Como uma palavra, uma idéia que escapa irremediavelmente da mente. Derrotado e cançado tanto pela viagem e pelo ocorrido ele dormiu.
  Na manhã seguinte ele tentou voltar a sua rotina. Começou tentando ler alguns relatórios das análises que deixara seus computadores trabalhando durante as férias. Mas as palavras se misturavam, se confundiam, não entravam em sua cabeça. Os números pareciam certos, mas ele desconfiava do contrário.
  Então entendeu. Bruno trouxera pesos, no plural. Aquilo o incomodou profundamente. Largou o que estava fazendo e voltou ao quarto do amigo. Olhou em volta, mecheu em algumas pilhas, examinou dentro do armário, embaixo das roupas, até embaixo da cama, mas não encontrou o segundo peso. Sentiu como se uma coisa gelada crescesse em seu peito, a adrenalina subiu, a mente apitou. Rumou apressado, então, para a sala de mineração. Precisava examinar o corpo mais uma vez.
  Vestiu a roupa de proteção mecanicamente e entrou na sala com tanta convicção que quando viu que o corpo não estava mais ali seu coração pareceu que ia rasgar uma saída pela garganta. Estava tudo limpo, com exceção da trituradora, que ainda estava coberta de sangue e exibia o braço mutilado de Bruno entre as engrenagens. Bill provavelmente havia terminado seu relatório e autorizara a limpeza do lugar. O que se confirmou quando Rafael saiu do banheiro da sala de mineração com uma pinça enorme e um balde.
  - Horrível de se ver, sim - disse ele - mas é pior ainda ter que limpar - fez uma careta por trás do vidro do capuz - Resolvi ser cavalheiro uma vez na vida e cobrir a Helza... - olhou para a trituradora por um tempo - não, homens têm que ser homens.
  Rafael reclamou do perigo daquilo e fez ele ajudar a confirmar se a máquina estava realmente desligada da energia. Depois começou a retirar o braço da melhor forma que conseguisse. Ele observou por um tempo, pensando que Rafael faria bem em limpar o sangue do painel da máquina antes, mas não faria bem algum criticar o trabalho alheio. Deu uma olhada no botão de emergência, também sujo, e foi para o necrotério do setor médico, onde Bruno deveria estar.
- Um dia... - disse Clarisse, a médica da Estação - me disseram que eu era a responsável por manter as pessoas daqui vivas - fez uma pausa - Como eu posso fazer isso se vocês se matam sozinhos?
  - Hm - ele concordou, ela nunca se conformara com Gary que havia tentado aterrissar sua nave manualmente e acabara caindo em uma cratera e... morrendo. Pediu licença para olhar o corpo de Bruno. Trajaram-se com as roupas de proteção, ele já estava se cansando disso, e ela o acompanhou até o necrotério - Você chegou a examiná-lo?
- Não - fez uma cara pensativa olhando para o cadáver - Vejamos... A julgar pela falta do braço... hm, acho que foi Lepra...
  Ele a encarou, estudando seu sorriso zombeteiro.
  - Tem tão pouca consideração pela vida?
Ela cutucou o peito de Bruno.
- É mais desconsideração com mortes idiotas assim - ela cruzou os braços tornando o semblante sério - O que procura?
- Uma idéia... Estou atrás de fantasmas, na verdade. Pode me ajudar a colocá-lo de bruços?
  Bruno ainda vestia sua roupa de proteção. Retiraram seu capuz e ele encontrou o que procurava... Não o peso desaparecido, mas uma fratura atrás da cabeça que coincidentemente podia indicar sua passagem por ali. Também reparou em outro detalhe.
  - Você limpou o traje dele ou algo assim? - parecia obvio que não, mas não queria tirar conclusões precipitadas.
  - Não - disse ela, com os grandes olhos verdes brilhando de curiosidade.
- O botão de parada de emergência da trituradora... - ele ficou zonzo com a possibilidade, levou a mão a cabeça, escorou-se na parede das gavetas de corpos do necrotério, escorregando até se sentar no chão.
- O que que tem? - ela se agachou na frente dele, o encarando nos olhos.
- Estava sujo de sangue quando foi apertado - aquilo não podia ser verdade - Tinha uma marca de mão.
  Ela olhou para a mão de Bruno, alguns pequenos respingos mas nenhum sangue além disso.
- Se ele não apertou o botão, não estava sozinho - ela olhou para ele - e essa ferida na cabeça...
  - Sim - ficaria intoxicado se tirasse o capuz, caso precisasse vomitar? Ele não sabia - Acho que não foi um acidente.