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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Vento

Elize acorda no meio da noite ao ouvir barulhos estranhos em sua casa. Ela sempre reclamara de barulhos, porém, seus pais faziam assim como todos faziam, ignoravam-na. Ela tinha 22 anos, cabelos compridos, gostava de roupas largas, odiava calças. Certa vez, quando todos foram à cidade, ela recortou todas as calças que haviam em sua casa. As calças de seu pai, as ceroulas de sua mãe e as da Fátima, e as calças do Jairo. Tudo em picadinhos no meio da sala. Esse seu feito lhe rendeu vergões feitos pela cinta de seu pai. Os vergões renderam à sala uma pequena poça de urina feita por Elize. Agora, cada vez que ela vê uma calça, angustia-se, esconde-se, fecha os olhos com força e pede para ser levada. Ignoram-na. Ela já estava acostumada a ser assim tratada, com indiferença. Se chegam parentes em sua casa, ela vai para seu quarto. Se o leiteiro entrega o leite, ela vai para seu quarto. Se ouve carroças passando na rua, ela vai para seu quarto.
Seu quarto era bastante peculiar. Maior que a maioria dos quartos daquela cidade. Possuía duas camas, sendo uma sem pés e outra com pés altos. Os mistérios escondidos sob as camas deixavam Elize impaciente, então, seu pai, engenhoso, resolveu seus problemas assim. Mas naquela noite, o que perturbava Elize não vinha debaixo da cama, nem das calças. As camas e as calças costumavam produzir barulhos indecifráveis soprados no seu ouvido. Os barulhos que aconteciam agora eram exatamente o contrário disso: nítidos e distantes.

Os pais de Elize comentavam para seus amigos que haviam enviado a garota pequena para a França, estudar. E que suas cartas eram inegavelmente de uma garota formada pela escola francesa, com no mínimo um terço de firulas e palavras que não precisavam estar ali para darem sentido, mas que precisavam estar ali para dar credibilidade. Por vezes, Elize ouvia histórias suas que nunca viveu, e sentia-se feliz com isso, pois aquele era o momento que percebia a importância que sua família a dava. Não cansavam de demonstrar como ela era linda, estudiosa e inteligente. Não cansavam de dizer que sentiam saudades, que não viam a hora de poder vê-la de perto, de ver seu rosto pleno de vigor juvenil. Não casavam de dizer que amavam-na. Todavia, nem entravam no quarto de Elize. A última vez que seu pai entrou no quarto foi para colocar os pés altos na cama dela.

E Elize era feliz assim, do seu jeito. Mal sabia ler. Pensava que França era o nome de uma escola. Urinava-se ao ver cintas. Escondia-se ao ver calças. E o único toque real que tinha era de Fátima, babá, dama de companhia, empregada e tudo o que uma funcionária possa ser para transformar uma casa em lar. As coisas poucas que a vida havia ensinado para Fátima, Fátima ensinara para Elize. Das melhores coisas que Fátima fazia além de seus biscoitos mágicos, era contar histórias. E contava sobre João e Maria, Pinóquio, João e o Pé de Feijão, Três Porquinhos, Lobo Mau, Drácula, Romeu e Julieta e por aí vai. Certo dia, Fátima achou um livro de geografia e esqueceu no quarto de Elize, ao menos é isso que Fátima conta. Elize leu, viu mapas geográficos, políticos e demográficos, viu florestas, viu perspectivas. Fátima leu Elize, viu resultados positivos, ela estava mais sociável, mais aberta ao novo, com sede de palavras. A babá sempre achava livros e sempre esquecia no quarto, ao menos uma vez por semana. Ler diminuía os barulhos sob as camas, das calças e dos cintos. Mas aquela noite foi apavorante. Ouvia a voz de sua mãe abafada por uma mão mais forte que a mão de seu pai. O silêncio de seu pai era ensurdecedor.

Sem entender a situação, Elize colocou algumas coisas sobre a cama sem pés, da mesma forma que ela havia visto no livro Sobreviva na Mata Atlântica, inclusive colocou este e outros livros. Ela juntou as quatro pontas do lençol, formando uma trouxa. Abriu a porta de seu quarto com medo. A porta da sala estava aberta. Não houve pensamento dúbio. Ela partiu. Ao olhar para trás, percebeu um rosto de olhar fixo aos seus movimentos.

Depois de andar até o clarear do dia, Elize senta-se à sombra de uma árvore, abre sua trouxa, come um pedaço de pão e compartilha da água do açude que estava ao seu lado junto com um cachorro que estava a seguindo desde que saiu da cidade. Ela oferece um pedaço de pão para o cachorro, que a ignora.

- Até o cachorro me ignora! – exclamou Elize.

Resolveu assobiar para chamar a atenção do animal. Obteve sucesso. Nomeou o cão de Assobio. Por ali ficou algum tempo. Dormiu por uma hora ou um pouco mais. Acordou com Assobio lambendo sua boca. Decidiu não se deixar ser ignorada a partir de então. Seguiu viajem rumo ao sem rumo.

A estrada era larga, sem construções nem pessoas, com o horizonte para onde sequer que alçasse sua visão, estrada de chão bruto com muitos pedregulhos nas beiradas. Alguns destes ela recolheu em sua trouxa. Nunca houvera sentido o que sentia por ora. O vento não fazia parte da rotina de seu quarto. Nada ali fazia parte. Quando muito reconhecia algo dos velhos livros da Fátima. E começara a falar com Assobio sobre um bom nome para ela.

- Se você gostar da algum destes, me avisa. – diz ela fitando o cão – Julieta morreu jovem, você não deve gostar deste... Vejamos... Dorothy! – ela olha para o cão que continua farejando as moitas – pois é, você tem razão, ela é do mundo de Oz.

O silêncio expressa-se em passos largos. Elize continua a pensar em um bom nome. Mas os nomes que ela conhece já possuem dono. Ela quer uma história sua. Quer que um dia alguém perca seu livro, quer que outro alguém um dia ache-o e esqueça-o, quer que a pessoa certa encontre-o, e que esta saiba como foi que as coisas se sucederam.

- Vento...

O som sai tão baixo que Assobio sai do lado de Elize e senta a sua frente com cara de interrogação.

- O que foi, Assobio? Gostastes de Vento?

O cachorro dá um latido único e dispara. Elize entende que este deve ser seu nome daqui para frente. Assobio corre para fora da estrada principal, por um caminho menor, com espaço para apenas uma carroça passar. Ao fim desta estrada, ela encontra o Sanatório Boa Vista.

Ela sente desconfiança, mas Assobio invade o lugar. Uma senhora de rosto simpático pergunta em que pode ser útil. A garota explica que não tem dinheiro e está procurando um lugar para ficar. Merla informa que os dois podem ficar desde que ajudem no trabalho. Merla pergunta o nome da garota.

- Meu nome é Vento, e este é meu amigo, Assobio!

Merla olha desconfiada por alguns segundos. Porém, sorri quando Assobio deita em seus pés com a barriga para cima.

- Vento, né? No segundo andar tem uma porta sem tranca. Lá será seu quarto e o do pulguento. Amanhã te mostro os afazeres.

Vento vai até o quarto. Havia um colchão no chão, travesseiros e lençóis limpos. Ela dorme assim que repousa seu corpo.

Após trabalhar por uma semana no sanatório, Vento e Assobio resolvem colocar seus pés e patas na estrada. Ao comunicar sua vontade à Merla, a dona leva-os até um dos quartos com tranca para pagar os dias trabalhados. Quando Vento e Assobio entram no quarto, Merla tranca a porta.

- Desculpe, Vento, mas não posso trabalhar aqui sozinha. A varíola está aumentando na cidade. Logo chegarão mais doentes para morrer aqui. Então você me ajuda, ou morre junto. Vou te deixar pensar um pouco.

Por três dias sem água, sem comida e sem banheiro, Vento e Assobio ficaram naquele quarto pequeno, sem janelas, sem saída. Suas necessidades fisiológicas foram feitas num dos cantos, e os odores já não eram mais notados pelo olfato dos presentes.

- Eu trabalho para você até o fim da epidemia. Solte-nos! – grita Vento quase sem forças.

E assim ela o fez. O sanatório lotou de doentes. Merla nem sequer chegava perto das pessoas infectadas, mandava Vento fazer tudo. Embora fosse um trabalho cansativo, Vento sentia-se útil e realmente importante para aquelas pessoas. Merla não dava nenhum tipo de proteção para Vento. Assobio era amado por todos, sempre fazendo seus carinhos, exalando charme entre as macas. Todos os dias alguém era enterrado por Vento e Assobio. Todos os dias, amigos se iam e novos chegavam também para logo irem.

Vento percebeu que estava fortemente gripada. Mas não podia deixar todos lá sem alguém para zelar por eles. Ela sentia-se na obrigação de dar um pouco de dignidade nem que seja na hora da morte. Todos os paciente que chegavam lá já estavam com estágio avançado da doença e vinham dos hospitais das redondezas, com aventais dos próprios hospitais. Vento não sabia como se pegava varíola, tão pouco sabia que os primeiros sintomas são idênticos aos da gripe.

Sua gripe só piorava. Vômitos e alucinações já se faziam instalados em seu corpo. Certo dia, chega um homem de chapéu, aparentemente saudável. Merla não deixou Vento atender, pois poderia ser alguma inspeção ou algum rico querendo internar um paciente psiquiátrico. Vento espiou de cima da escada. Ela conhecia aquele homem. Mas o que mais lhe impressionou foram suas calças e sua cinta. Ela urinou-se ali mesmo. Eram as calças e a cinta de seu pai. Vento recordou que viu aquele rosto no dia que fugira de casa, ao fita-la na porta de sua sala. Realmente não era seu pai. Ela sentia que precisava fugir.

Enquanto o homem conversava com Merla, Ventou saiu pela porta que estava entreaberta. A porta fechou-se. O homem saiu correndo para pegá-la. Na frente do sanatório havia há pouco um açude que secara e deixara apenas o lodo de suas cheias. Vento conseguiu empurrá-lo e correu o mais rápido que pudera. Assobio saiu como um raio acompanhando-a. Na beira da estrada havia um avestruz estacionado. Vento subiu no avestruz, que guiou-a até muito distante. No meio do nada, o avestruz para e fala:

- Acho que daqui você segue sozinha.

Vento desce da ave e caminha por um acesso secundário da estrada principal. É uma rua um tanto quanto povoada para estar ali bem no meio de lugar nenhum. Eram terrenos pequenos de uns dez metros de frente cada um. Cada terreno continha uma casa diferente e extremamente arrumada. O natal deveria estar próximo, pois até a rua estava enfeitada. A noite caiu brutalmente. Todas as casa tinham luzinhas natalinas, e tinham também umas palavras escritas em luz. Vento andava vagarosamente pela rua, sorrindo. Assobio seguia sua amiga, com medo.

- Céu do sul... céu do amanhecer... céu do noroeste – Vento seguia a ler as luzes – céu do leste... céu dos tropeços... céu da discórdia... céu do sono... céu do sudeste...


Ela continuava lendo, lendo e lendo. Parece que procurava por uma frase em especial. Até que estagnou na frente do único terreno que não tinha uma casa. A palavra de luz desse terreno era “céu”. Isso mesmo. Era só “céu”. Assobio chorou, mas deixou Vento ir. Da rua via-se o terreno vazio. De dentro, via-se a rua vazia. De dentro, via-se todos os que se foram, via seu pai, sua mãe, até a Fátima.

Enfim, não ignoraram-na. Vento encontrou um céu para ser livre.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Não entre em pânico

- Tem mais alguma coisa que você não queira ver?
- Imagino... Não queria, mas imagino. - diz ele.
- Me fala! Posso te mostrar.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Eu quero a sorte

Eu quero a sorte de um amor tranquilo
Com sabor de fruta mordida
Nós na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva

Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum trocado pra dar garantia

E ser artista no nosso convívio
Pelo inferno e céu de todo dia
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia

Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum veneno antimonotonia

E se eu achar a tua fonte escondida
Te alcanço em cheio, o mel e a ferida
E o corpo inteiro como um furacão
Boca, nuca, mão e a tua mente não

Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum remédio que me dê alegria

Composição: Cazuza

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Quinto Andar


     Ela havia acordado mais tarde do que deveria, mas o sono persistia em assolar sua percepção. Procurava um bom e velho ônibus, mais velho do que bom, como pudera de ser, para encostar sua cabeça, pois bons ombros amigos estavam longe, e ombros não são amigos por natureza. Ela tinha alguns poucos trabalhos para serem feitos e alguns livros para ler antes da prova de daqui a pouco, mas ao invés de fazer o que sabia que era certo, procura as poltronas aconchegantes do quinto andar para terminar o que houvera começado no 343 da Carris. Algumas ideias insistiam na sua cabeça, ideias antes não cogitadas na sua vida ocupada. Como diz a sabedoria popular, “Cabeça parada, oficina do Diabo!”. Creio que as cabeças com sono também. Aposto três libras, que você, querido leitor, já teve sonhos com seus mais ocultos desejos, ou sonhos horríveis com sangue e efeitos pirotécnicos, ou ainda, como os que estou sonhando ultimamente, sonhos do mundo da fantasia, bem ao estilo Nárnia. A fantasia sempre nos esteve presente, alguns acham besteira e outros fazem dinheiro com isso, mas Maria, apenas faz perguntas.
     Enquanto ela estava a se aventurar, juvenil, em um primeiro casamento, inserido por circunstâncias e decidido por sentimentos, ele já estava no terceiro. Mais velho e com mais experiência em romances, o que ele quer com ela? Ela estava esperando um anel, dentro daquelas caixinhas vermelhas que fazem mulheres chorar, mas isso não veio. Todavia, nem tudo está perdido, no lugar da caixinha vermelha, veio um all star vermelho. Ela deu-se por satisfeita, temporariamente. A dúvida daquela garota não seguia-se de insegurança de metais em dedos, pois isso poderia também forjar-se, mas sim, dos sentimentos. Seriam eles autênticos, dele por ela? Ou apenas uma forma de sentir-se mais jovem e acompanhado? Uma forma de mostrar para si que é suficientemente interessante para uma garota jovem dedicar sua companhia?
     Maria desiste de tais dúvidas, pois as poltronas do quinto andar... Ah! As poltronas do quinto andar! Estas sim chamam a atenção por onde passam, mesmo sem sair do lugar.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Amores de Maio



O frio das ruas e o calor de seus corações. Bom para dormir né? Bom para se ter um amor. Um guarda-chuva nos evita o molhar durante a tempestade, mas o que pode nos evitar uma paixão?

- Por que você tem quer ser tão bom? - ela disse.

- Porque você é ótima! - respondeu ele.


sábado, 26 de abril de 2014

Como você se escondeu aí?


Ela não sabe como aquele homem pudera ainda estar tão presente à vida dela, sendo ele do jeito que é.

Ela tenta compreender como, mesmo depois de todos seus casamentos, depois de seus últimos 5 empregos (em menos de três meses), depois de sua barba e de todos os seus cortes de cabelo, como ele ainda estava lá.

Ela não sabe como consegue viver com essa espinha dentro do nariz. Sim, ele é uma típica espinha de dentro do nariz. Ninguém vê, mas você sabe eque está lá porque dói, e você gosta de fazer doer.

Colecionadores de Decepção


"Olha o sorriso do 'neguim'
Quando cê chega
Os cara olha, e eu encaro, tipo
Que que cê quer com a minha nega?

Cê disse que eu era tudo que cê sonhava
Meu olho brilhava em cada palavra que você falava
Logo de cara te prometi uma canção
Não me agradece o rap, não,
Eu que agradeço pela inspiração!

Cê tem seus ex, eu tenho minhas ex (que só dura uns 'mês')
Somos colecionadores de decepção

Tudo que eu peço na vida é ser abençoado
Que cada ano sem você me traga mais 10 anos do seu lado

Logo se sente que isso vai dar certo, com certeza já deu
Só de ter te conhecido a minha vida já valeu...

E só quem vive um negócio assim sabe
Porque eu digo sim, meu sentimento nem cabe dentro de mim
Por isso que eu te escrevi essas rimas reais
Nosso romance agora vai ser trilha pra outros casais

E quanto tempo eu vivi sem você, só vaguei, sem saber
Conhecendo novos lares
Minha vida teve início depois de te conhecer
Antes disso eram só preliminares

Que passe o tempo, que se modifiquem mares
Que a paz se solidifique em todos os lares
Que após o carro a moda seja as astronaves
Mas que a nossa graça permaneça igual o programa do Chaves

Te quero em todos sentidos imagináveis
Com todos seus sentidos inigualáveis
Eu nem conheço amores inabaláveis
Mas sou guerreiro e vou lutar pra que o nosso seja o primeiro..."



No dia em que te conheci eu soube. Soube que você ia fazer parte, ia cruzar sua reta na minha torta e deixar uma marca. No jeito que me olhava sabia que você guardava algo de especial; e seus lábios clareavam a certeza de que faltava aquela peça no meu quebra-cabeças. Você seria.


Eu arrumei um pouco a bagunça da sala, do banheiro, do quarto. Recebi você de portas trancadas que era pra ninguém perturbar esse momento que era só nosso. Eu via nosso começo se desenhando e dando forma a todas as sensações que nosso primeiro encontro ocular me trouxe. E você não me trouxe flores, nem vinho; trouxe gestos e palavras. Trouxe sentido.

Eu senti aquela espécie de reviravolta no estômago que não machuca. Aquele arrepio na pele. E a gente se tornou música. É que sua batida combinava com a minha melodia e já poderíamos lançar um álbum. Seu carinho fazia água nos meus olhos e você nem percebia. A gente estava sendo.

Você foi. Levou seus gestos e palavras e deixou apenas flores e uma garrafa de vinho. E eu bebi e brinquei de "mal-me-quer, bem-me-quer" com todas as pétalas. É que talvez o fundo da garrafa ou o miolo da flor me trouxesse a resposta, a explicação; me devolvesse o sentido, arrumasse a bagunça que você deixou. Por que é mesmo que você foi embora?

E demorou até eu entender que algumas palavras eram vazias mesmo; que carinho não era promessa de duração e encaixes se desfazem da mesma maneira que se fazem; que o que a gente poderia ser, não é o que a gente é. E a gente segue. Segue um caminho. Segue diferente. 

Eu segui diferente. Diferente de você; diferente de mim antes de você. E você levou tudo aquilo que só teu corpo podia me dar. E deixou um pedaço. Porque de tanta diferença, havia uma certeza. E eu confirmei que você ia mesmo deixar marca quando passasse. E agora sou eu que passo marcada.

Eu segui um caminho outro. É que você me desviou de onde eu estava indo. E ouvi outro dia que por lá havia um acidente, uma batida, uma parada que impedia qualquer fluxo. Para onde eu vou, não sei. Mas, obrigada. Obrigada por me emprestar um pouco de você para eu chegar um pouco mais em mim.


Música: Até o final - Projota
Texto: Você em mim - Blog Só Letras

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Lavando a roupa suja



Olá, queridos leitores!

Digo-lhes que ainda tenho autoria neste blog! Meu querido subordinado (já que ele me assumiu como suja chefa), Lyer, estava enganado sobre minha falta de escrita. Ando sem publicar por aqui e peço-lhes desculpas por isso, mas ocupações diárias me tomam um bocado de tempo, e meus pensamentos andam bem problemáticos. Ah! Não contei para vocês ainda, mas fui demitida esta semana, com muita alegria! Agora poderei dedicar o meu tempo e a minha liberdade ao meu curso, tão medíocre, tão ínfemo e tão perfeito, a Matemática. Não, bacharelado não! Quero mesmo ser professora. Não adianta vocês ficarem me dizendo que professor não ganha bem, que professor sofre, que professor isso ou aquilo. Não vai adiantar. Talvez eu goste de ser pobre e sofrida. Talvez eu tenha tornado isso por um hábito. As possibilidades de por que largar o antes pela matemática já foram discutidos em outro post mais antigo. Enfim, professor é um drama. Por muito gosto de dramas, como quem acompanha minhas histórias por aqui, ou a minha vida mesmo, já deve ter percebido.

Lyer gosta de escrever histórias bizarras. Eu havia criado um mundo pós-apocalíptico bizarro. Juntamos o útil ao agradável! Porém, os detalhes deste mundo ainda não foram escritos aqui. Após a queda de um asteróide na Terra, poucos sobreviveram, as vacas foram extintas assim como a maioria dos animais. O asteróide já estava sendo observado há tempos antes de sua queda, o que possibilitou as construções das fortalezas, sem que fossem percebidas pelos habitantes. A europa foi a mais atingida. Havia uma fortaleza na França, que não suportou o impacto. Outras fortalezas estavam Washington (US), Porto Alegre (BR) e Pequim (CH). A Fortaleza de Pequim era estrondosamente grande e não aparece muito nas nossas histórias, mas é de lá que vem a maior parte dos equipamentos tecnológicos. Não se foi divulgado ainda, mas parte da Amazônia foi protegida ao caos, por uma construção genial das Nações Européias, que não existe mais. A lua tinha uma estação de pesquisas nucleares. Nas fortalezas havia água e comida para suportar a população por 50 anos, de maneira racionada, claro. O que chamavam de comida, era uma ração a base de proteína. As pessoas que foram convocadas para embarcar nas fortalezas foram decididas por ordem de importância e saúde física. Os ricos financiaram essas lúdicas construções pensando em salvar suas peles, mas só os que estavam com saúde plena realmente foram convocados. Na hora de aguardar o choque do asteroide com a Terra, houve muita confusão e pessoas que não foram convocadas acabaram por entrar e se salvarem. Assim, nosso casal foi parar na Fortaleza de Porto Alegre. Embora as construções suportassem a radiação, houve a contaminação de várias pessoas, que morreram em cinco anos ou menos. Especialmente os homens que foram detectados como contaminados e sobreviveram por mais de cinco anos, mostravam-se incrivelmente juvenis. Neste momento dos acontecimentos é onde retomamos as histórias do nosso casal sem nome, com o conto "Rosa, Livros e Asteróides". Eles não terão nomes. Se chamam às vezes de João e Maria, mas sabe-se que estes não são seus nomes reais. Os demais personagens terão nomes, pois é preciso. Na estação da Lua, ocorrem os crimes do "Oito menos um", que possui esse nome, pois era para ser uma saga, com o próximo conto denominado "Oito menos dois", de autoria do nosso Lyer. Estamos ansiosos para sabermos os demais assassinatos, e também para saber quem está matando e por qual motivo, e ainda se algum deles terá alguma relação com os nossos personagens já conhecidos. Ainda não sabemos se iremos continuar neste mundo, mas histórias poderão ser criadas paralelas ou, sintam-se a vontade para dar novo rumo às histórias do nosso casal sem nome. Posso eu, ou o Lyer, ou qualquer outra pessoa que queira, jogar nosso casal sem nome em qualquer outro tempo ou lugar, que seja em Netuno! E se for possível se apaixonar por seus próprios personagens, eu sou apaixonada pelas histórias deste casal, mesmo sem nome, mesmo com altos e baixos, mesmo num mundo sem pizza, sem ar, mesmo sem dois dedos no pé, ou com seus dedos tortos...

Enfim, para vocês, uma boa Páscoa!

Para o Lyer tenho que pensar se ele merece algum cumprimento meu, pois veio lavar a roupa suja por aqui... Esses estagiários!

terça-feira, 8 de abril de 2014

Prosa sem verso

       Hoje notei que estou só como autor do blog, o que significa que só posso fazer postagens e nada mais... É triste, mas a chefa não confia o bastante em minha pessoa a ponto de me dar o poder absoluto. Mas estou aqui pra falar um pouco de mim, afinal, esse é meu assunto preferido e o que mais domino.
       Na verdade só vou falar das coisas que escrevi aqui... Bem, os primeiros dois textos foram só um teste. Pra ver se nossa querida Kaoni aprovaria minha forma de escrever. Há diferenças sim, e não só na cor. Talvez tenham percebido o tempo. Enquanto nas histórias rosadas imperam o tempo presente eu, seu amigo azulado, escrevo basicamente no passado. Como se a historia já houvesse acontecido e eu sendo o narrador onisciente, ou não.
       E de onde vem tamanha criatividade? Plágio autorizado, claro. De onde mais? Vou explicar. A Boss idealizou um universo pós-apocalíptico no qual um meteoro caiu e muita gente morreu. As pessoas que sobraram formaram sociedades e vivem pacificamente... É isso que tentei expressar em meus textos. Tentei inventar o mínimo possível de informação não disponibilizada previamente e o resultado foram essas histórias paralelas sem muita relação com os personagens inomináveis da chefa... Tirando a minha ultima publicação "Oito menos um" que, com exceção do protagonista, todos receberam nomes superficiais, afinal, eram pedaços de carne destinados a serem assassinados, eram muitos.
       Alias, o nome do primeiro personagem era Eddy e o segundo era Dave. Pronto. Falei. Eu gosto de dar nomes aos meus personagens. É realmente dificil localiza-los na cena sem poder dizer seus nomes... Mas foi ordens superiores, fazer o que? Eu invento historias complexas ao inves de dialogos cheios de significado, e não dar nomes as torna mais confusas do que já são... Mas é isso. Tempo = palavras.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Essa talvez não seja uma história de amor

Levava minha vida sossegado, fazendo faculdade de engenharia, trabalhando em uma empresa de energia solar. Finais de semana sempre estava com meus amigos em alguma festa e sempre acompanhado de uma bela mulher. Nunca de fato me permiti envolver verdadeiramente com uma pessoa depois do meu primeiro e último relacionamento. Conheci uma mulher em uma dessas festas, chamava-se ela, Catarina.

De início não éramos de conversar muito, nos falávamos só quando estava todo mundo junto. Aconteceu de sair a mesma turma com frequência e assim fui me aproximando dela,  conhecendo-a melhor, me encantando com essa beleza ímpar... só dela. Não me refiro só a beleza física, mas sim, da beleza interior. Tinha uns olhos que me encantavam da mesma maneira que o som da flauta de um encantador encanta a serpente, um sorriso que qualquer homem ao redor pararia só para olhar, um tom de voz que minha alma escutava como música e ficava a dançar, a cantarolar. Engraçado, às vezes me pego pensando nela, desejando-a. Não um desejo malicioso, é um desejo pelo seu ser, fome de suas palavras, mesmo que não diretamente para mim. Estar ao seu lado me proporciona um turbilhão de sentimentos. De paz, de calma, de euforia e um queimor na boca do estômago como se eu estivesse na beirada de um grande e alto edifício. Fico a imaginar quão grande seria nosso romance, daqueles que só se vê em filmes e novelas. O casal apaixonado correndo pela chuva, beijos sedentos, cartas e mais cartas de declarações de amor. Ela fez a escuridão que habitava dentro de mim, ser substituída por luz. O coração de Catarina já tem dono. Será esse mais um amor impossível? Daqueles que não se pode gritar para o mundo?
Bom, me resta sonhar, desejar e ama-lá por aqui, mesmo que em silêncio.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Lançados à sorte (ou azar)



Numa mistura de não poder com desejar, ele a procura.
Não é uma Fuga! - afirma ele.
Não, realmente não é.
Chama-se sintonia.
Os mais experientes chamariam plenitude.
O mais juvenis, safadeza.
Dê você o nome que quiser.

Ela havia dado a ele, num dia qualquer perto do fim de um ano qualquer, uma oportunidade qualquer de criar um bocado de vida com ela. Ela não sabia. Nem ele. Se naquele momento, naquele bar, ele a tivesse tomado por um beijo e tivesse dito uma de suas frases previsíveis e poéticas ao pé do ouvido dela, como agradecer o calor de seus lábios, ela apostaria nele. Apostaria um beijo que ele a roubaria mais um, e mais outro. Ela largaria das histórias que estava vivendo, pois veria como ilusão do momento, e seria ao lado dele, com ele, como um rio em época de cheia. O calor do encontro dos lábios desses dois provocaria tempestade no sertão. O calor deles aqueceria tudo que os cercam. O corpo. O coração. A alma. Os indesejáveis invernos seriam férias de verão dentro daquele quarto. As festas e o gênero musical diferente entre os dois, geraria novas visões e novos conflitos, pois ambos adoram contravir e convencer. Talvez, pelo tamanho do ego deles. Ele fala disso, do ego, de maneira escrachada. Ela, ainda tenta admitir que o tem. No fundo, mesmo sendo diferentes, eles se completam por gostarem de ser um pelo outro. Doar-se com reciprocidade. Eles se encotraram.

Enquanto ela contava para ele sobre o cara que tivera conhecido na semana passada, numa festa estranha, ele continuava a olhá-la, sem ter reação alguma. Eles não tinham nada, só se conheciam há algum tempo, ele não pudera saber o que ele provocava nela, nem ela nele. Dois bobos. Enfim, ele a ouviu em silêncio e perdeu, como já disse antes, a oportunidade de fazer as coisas diferentes.

Os dados foram lançados à sorte (ou azar). Um homem de camiseta vermelha fumou seu último cigarro antes do término do intervalo. O mendigo estranho que habitava aquela rua continuou NÃO aceitando a comida que lhe ofereciam. O cachorro continuou seguindo o mendigo. Os buracos das ruas permaneciam nos mesmos lugares. Os olhos dele, olhos luzeiros, continuavam lá, sentados, calados, escutando sobre um cara qualquer que não era ele, numa festa qualquer que ele não estava. Ela daria um dente para saber o que se passava na cabeça dele enquanto ela falava sem parar. Daria um dente pois o olho de sua cara é míope e não vale tanto quanto sua curiosidade. Eu também não sei o que ele pensou, juro que quando souber, conto aqui para vocês.

Bem, eles se foram por caminhos próximos, mas não próximos o suficiente.

Ela casou com o cara da festa. Ele casou com uma garota com o gosto musical parecido com o dele, que não tinha muito amor próprio, pois todo amor que coubera nela, depositara nele.

Algum dia vou ter saco para contar com detalhes a vida dessa "garota sem amor próprio" depois que casou com esse cara. Não hoje, pois isso precisaria de muita vodka. Na verdade, meu copo está vazio e vou ter que ir enchê-lo. Por enquanto, o que posso adiantar é que a vida tratou de deixar os personagens principais desta história próximos de novo e dessa vez, próximos o suficiente.

Magro?


domingo, 12 de janeiro de 2014

Oito menos um

  Da janela da pequena cabine, podia-se ver o brilho de incontáveis cristais azuis na superfície. Vestígios das falhas tentativas de evitar a catástrofe iminente. Quando o asteróide se aproximara da Terra, os esforços se provaram tardios e a atmosfera do planeta foi praticamente pulverizada com aquela estranha matéria, como veneno na plantação. No caso, os humanos eram a praga e bilhões pereceram.
  Seria egoísmo da humanidade se colocar como principal vítima quando toda a vida na Terra sofreu com o impacto, mas nem os próprios sobreviventes se deram conta de sua sorte. Mutações genéticas imperceptíveis que os livraram da morte por intoxicação pela substância e que possibilitaram uma adaptação radical na vida terrestre.
  Mesmo com toda morte e desolação, o estado lastimável de reconstrução que a humanidade teve que enfrentar, tudo aquilo parecia ter sido deixado para trás e as pessoas estavam se encaminhando para a perfeição, tanto física como filosófica.
  - Mas humanos são humanos... - ele suspirou, olhando pela janela enquanto a estação na lua se aproximava. Na Terra, pessoas ainda morriam, mas não mais por causa do gás. As pessoas sempre pareciam procurar motivos para se matarem.
  Uma sociedade foi montada e leis foram criadas para gerir esse novo sistema. Cidades-fortaleza protegidas de outras toxinas liberadas pelo asteróide e gerenciamento dos recursos não foram capazes de satisfazer todas as pessoas e muitas se rebelaram. Independente dos interesses, guerras ainda eram travadas e pessoas morriam todos os dias.
  Se sentindo quase liberto, afastado finalmente da futilidade humana, ele saiu da pequena nave que já aterrissara. Havia tirado férias e mandado para Terra por um tempo que parecia uma eternidade. No curto período de um mês que passou na 14ª Cidade rebeldes causaram tumultos duas vezes, uma delas com um atentado a bomba contra o capitólio. Mas agora estava feliz por voltar para o que já considerava sua casa, afinal.
  Foi recebido por Bill e Sandra, que monitoraram sua aterrissagem. Os outros cinco trabalhadores da Estação de Pesquisa de Equitarium estavam cumprindo suas tarefas, muito provavelmente.
  Bill era o responsável pela segurança e monitoramento dos setores da Estação, enquanto Sandra era uma pesquisadora de reagentes. Já esperava por Bill, o velho bigodudo nunca deixava alguém entrar ou sair da Estação sem um simpático e cheio de dentes sorriso, que por algum motivo foi substituído por uma mera levantada dos cantos da boca. Mas Sandra não fazia exatamente parte do círculo de amizade dele naquele lugar. Ela era amiga de Ester e Bruno, o lindo casal que na verdade deveria estar ali agora.
  Confuso, cumprimentou os dois. Bill deu um aceno de cabeça e um olhar firme, enquanto Sandra o encarou e pareceu prestes a desabar em lagrimas.
  - O Bruno... ele... - soluçou ela - morreu.
Sentiu um imenso vazio desesperador em seu centro. As lâmpadas brancas pareceram perder o brilho. O ambiente que antes parecia tão familiar e acolhedor perdeu parte das cores, quase mudando para um sépia.
   - Como é? - disse com uma espécie de graça e desolação. Sandra não brincaria com aquilo. Percebeu que estampava um meio sorriso tão idiota que achava que seria capaz de causar câncer em alguém. Apressou-se em desmanchá-lo - O que... o que aconteceu?
  - Não sabemos exatamente, encontramos o corpo ontém de manhã - disse Bill enquanto Sandra esfregava os olhos - Estava na sala de mineração, ele foi... Ah, prensado naquelas máquinas - encolheu os ombros como que pedindo desculpas.
  Mais tarde ele foi ver o ocorrido com os próprios olhos. Bruno estava no chão da sala de mineração, coberto por uma lona branca. Perceber que ele estava por cima das máquinas e em algumas paredes também não ajudava a entender a situação.
  Ele já havia acompanhado o processo de mineração e extração do Equitarium. Consistia em vestir uma roupa amarela de proteção de conteúdos e colocar pedaços de rocha minerados do terreno ao redor da Estação numa pequena esteira. O par de engrenagens dentadas trituraria os pedaços com uma força e eficiência cruel. O resto do processo era mudar o resultado de uma máquina a outra.
  Uma massa de carne podia ser vista na trituradora. Pela observação rápida, Bruno teve o braço direito destruído e por pouco não teve todo o corpo tornado guisado se não tivesse apertado o botão de emergencia na frente da trituradora. Infelizmente, foi contaminado pelo produto que estava extraíndo e morreu antes de poder chamar ajuda.
  Cobriu o corpo de seu amigo novamente e foi procurar Ester. Bruno não tinha parentes vivos e ninguém mais além de Ester e ele para se preocupar com o fim que o corpo levaria. Seria cremado quando Bill terminasse seu informativo e Sandra havia dito que Ester estava trancada e incomunicável no quarto desde que elas encontraram Bruno.
  - Ester? - clicou na campainha da porta do quarto dela, realmente não houve resposta. Pensou um pouco e, depois de mais um pouco de insistência, foi até o quarto de Bruno - Ester? - tentou novamente.
Não houve resposta, em vez disso a porta se abriu e uma mulher se jogou em seus braços. Ele a envolveu e ela comprimiu o rosto em seu peito. Ele ia dizer alguma coisa quando ela ergueu a cabeça sorrindo, os olhos vermelhos e lacrimosos.
  - Foi minha culpa - disse ela, ele podia sentir a tristeza e dor em sua voz - Eu precisava de Equitarium. Eu mandei ele extrair o máximo que pudesse - ela deu uma risada soluçada e esganiçada - Foi minha culpa.
  - É obvio que não.
  Deu um beijo suave em sua testa e escorou-a em seu ombro. Ficaram algum tempo assim. Abraçados em frente a porta do quarto de Bruno, ela parecia apoiar uma mescla de seu peso, sua dor e sua carência nele. Espiou para dentro do quarto. Estava escuro e bagunçado, coisa não natural, portanto Ester deveria ter passado por alguma crise histérica, a julgar pelas roupas  e outros objetos espalhados pelo chão.
  - Vá dormir um pouco - disse, analizando as olheiras da amiga - No seu quarto. Vou dar uma olhada por aqui, ok? - ela ascentiu com a cabeça, desvencilhou-se dele e caminhou lentamente.
  Dentro do quarto ele percebeu que aquilo não era exatamente uma bagunça, havia ordem no caos. Camisas em um lado, calças em outro, objetos casuais em uma pilha, objetos que ele calculou como tendo algum valor sentimental em outra. O quarto em si era no mesmo padrão de todos os outros da Estação, uma cama na perede direita, uma escrivaninha embutida na parede esquerda com um computador e um armário ao lado para roupas e quinquilharias. Um dos pesos estava embaixo da cama, Bruno os havia trazido da Terra e esperara pacientemente que a gravidade artificial fosse devidamente instalada na Estação.
  Não conseguindo pensar em nada mais útil para fazer, ele foi para seu próprio quarto. Sentou em sua cama, com as mãos nos joelhos. Alguma coisa estava errada. Muito mais que errada, mas o quê? Pensou. Pensou mais um pouco, mas já era tarde. Como uma palavra, uma idéia que escapa irremediavelmente da mente. Derrotado e cançado tanto pela viagem e pelo ocorrido ele dormiu.
  Na manhã seguinte ele tentou voltar a sua rotina. Começou tentando ler alguns relatórios das análises que deixara seus computadores trabalhando durante as férias. Mas as palavras se misturavam, se confundiam, não entravam em sua cabeça. Os números pareciam certos, mas ele desconfiava do contrário.
  Então entendeu. Bruno trouxera pesos, no plural. Aquilo o incomodou profundamente. Largou o que estava fazendo e voltou ao quarto do amigo. Olhou em volta, mecheu em algumas pilhas, examinou dentro do armário, embaixo das roupas, até embaixo da cama, mas não encontrou o segundo peso. Sentiu como se uma coisa gelada crescesse em seu peito, a adrenalina subiu, a mente apitou. Rumou apressado, então, para a sala de mineração. Precisava examinar o corpo mais uma vez.
  Vestiu a roupa de proteção mecanicamente e entrou na sala com tanta convicção que quando viu que o corpo não estava mais ali seu coração pareceu que ia rasgar uma saída pela garganta. Estava tudo limpo, com exceção da trituradora, que ainda estava coberta de sangue e exibia o braço mutilado de Bruno entre as engrenagens. Bill provavelmente havia terminado seu relatório e autorizara a limpeza do lugar. O que se confirmou quando Rafael saiu do banheiro da sala de mineração com uma pinça enorme e um balde.
  - Horrível de se ver, sim - disse ele - mas é pior ainda ter que limpar - fez uma careta por trás do vidro do capuz - Resolvi ser cavalheiro uma vez na vida e cobrir a Helza... - olhou para a trituradora por um tempo - não, homens têm que ser homens.
  Rafael reclamou do perigo daquilo e fez ele ajudar a confirmar se a máquina estava realmente desligada da energia. Depois começou a retirar o braço da melhor forma que conseguisse. Ele observou por um tempo, pensando que Rafael faria bem em limpar o sangue do painel da máquina antes, mas não faria bem algum criticar o trabalho alheio. Deu uma olhada no botão de emergência, também sujo, e foi para o necrotério do setor médico, onde Bruno deveria estar.
- Um dia... - disse Clarisse, a médica da Estação - me disseram que eu era a responsável por manter as pessoas daqui vivas - fez uma pausa - Como eu posso fazer isso se vocês se matam sozinhos?
  - Hm - ele concordou, ela nunca se conformara com Gary que havia tentado aterrissar sua nave manualmente e acabara caindo em uma cratera e... morrendo. Pediu licença para olhar o corpo de Bruno. Trajaram-se com as roupas de proteção, ele já estava se cansando disso, e ela o acompanhou até o necrotério - Você chegou a examiná-lo?
- Não - fez uma cara pensativa olhando para o cadáver - Vejamos... A julgar pela falta do braço... hm, acho que foi Lepra...
  Ele a encarou, estudando seu sorriso zombeteiro.
  - Tem tão pouca consideração pela vida?
Ela cutucou o peito de Bruno.
- É mais desconsideração com mortes idiotas assim - ela cruzou os braços tornando o semblante sério - O que procura?
- Uma idéia... Estou atrás de fantasmas, na verdade. Pode me ajudar a colocá-lo de bruços?
  Bruno ainda vestia sua roupa de proteção. Retiraram seu capuz e ele encontrou o que procurava... Não o peso desaparecido, mas uma fratura atrás da cabeça que coincidentemente podia indicar sua passagem por ali. Também reparou em outro detalhe.
  - Você limpou o traje dele ou algo assim? - parecia obvio que não, mas não queria tirar conclusões precipitadas.
  - Não - disse ela, com os grandes olhos verdes brilhando de curiosidade.
- O botão de parada de emergência da trituradora... - ele ficou zonzo com a possibilidade, levou a mão a cabeça, escorou-se na parede das gavetas de corpos do necrotério, escorregando até se sentar no chão.
- O que que tem? - ela se agachou na frente dele, o encarando nos olhos.
- Estava sujo de sangue quando foi apertado - aquilo não podia ser verdade - Tinha uma marca de mão.
  Ela olhou para a mão de Bruno, alguns pequenos respingos mas nenhum sangue além disso.
- Se ele não apertou o botão, não estava sozinho - ela olhou para ele - e essa ferida na cabeça...
  - Sim - ficaria intoxicado se tirasse o capuz, caso precisasse vomitar? Ele não sabia - Acho que não foi um acidente.