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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Palco de Areia


A fotografia do rosto das duas únicas crianças que assistiam a peça infantil foi ímpar. No início estavam entendendo nada. Procuravam o olhar de aprovação da mãe. Seus rostos estampavam uma variação entre a chatice que muitos sentem quando se fala em uma obra contemporânea, e a ironia no olhar de quando comentam sobre uma obra da Joana Vasconcelos.

A areia pode ser mágica em mãos hábeis. Pode ser simples brincadeira de sujar, ou, pode ser a poeira das estrelas. E essas estrelas podem ser tudo o que você deixou para trás dentro daquela caixa, a caixa das coisas atiradas e esquecidas, das coisas de antes de crescer, de antes de ser o adulto que acreditas que és. A areia pode ser o elo da memória da caixa, um disparador de sentir. E assim, no piscar prolongado dos olhos, jogada sobre o palco inclinado do Teatro de Évora que muito me lembra o Teatro São Pedro - com a saudade das ruas que não andei de Porto Alegre! - reencontro a criança perdida. A areia que sujou minha meia calça castanha e teimou em acompanhar meu braço, a areia fina e amarela-pálida, a areia que podia ser vidro, podia estar corrente nas águas desse planeta tão pequeno, estava ali, toda para mim, tal e qual eu para ela. Despida das preocupações do que os outros poderão achar, aceito a brincadeira e prolongo ainda mais meu piscar combinado com o toque suave deste pó mágico. Quem me conhece reconhece meu prazer pelo toque!

Texturas.

No carrossel instantâneo que congestionou meu espírito, transitei entre as águas cor de chocolate do mar de Tramandaí, a cancha de bocha da Ponte de Arame, e o crepúsculo do céu ao entardecer em Itapuã - que não é a do Toquinho e do Vinícius, mas onde vadiei alguns dias, ouvi as ondas quebrarem, falei de amor e também argumentei com a doçura de uma cachaça rolha. O sol que arde sob o breu de um palco de areia. Palco inquieto, irreproduzível, avesso. Palco para encandear lembranças.

Apague as lâmpadas dos olhos.
O jeito da sua escuridão me acalma.

A quantidade de pessoas continuava exatamente a mesma do início da peça, assim como as pessoas, que eram as mesmas. Porém, tínhamos no mínimo mais umas cinco crianças ali. A cada passo da atriz, um mar de possibilidades. As crianças de idade esqueceram a atriz, pois a areia é um fenômeno sem concorrência. As crianças que foram ali evocadas ficaram na expectativa, na observação, no apreciar da cena, esquecidos de suas idades e de suas vidas além daquele instante. O que ela vai fazer agora? Era uma dança bêbada de espalhar e recolher tábuas quadradas, que quando estavam empilhadas formavam uma caixa cúbica. O desempilhar, desenroscar, desordenar. O sujar, o experimentar, o evocar. O recolher. Maternal e furioso de repente! Um barco cúbico surge dentre as tábuas. Eu naveguei. Não esperei um grande final, pois o que arrecadei no durante foi mais que o suficiente. As luzes que eram poucas já se foram.

Tô sozinho aqui e tenho medo de fantasma.
Deixa eu dormir na sua casa?

Fragmentos da música "Deixa eu Dormir na sua Casa"
Banda Mais Bonita da Cidade