Total de visualizações de página

domingo, 19 de maio de 2013

Fones de ouvido


No fone dela toca a mesma música de sempre, na mesma playlist de sempre.
Silva. Adriano Silva é o nome dele. Ganhou a fama de Silva no quartel, há uns 5 anos atrás, quando Lula conquistou a presidência.
Lena. Eduarda Faleiro é o nome dela. Ganhou a fama de Lena de sua tia, que por algum motivo ainda não compreendido, chamava-a assim aos gritos para parar de jogar bola no meio da rua junto dos meninos.
Lena costumava pegar o ônibus das 18 horas e 15 minutos, do qual Silva é o cobrador. O ônibus quase sempre está com todos os assentos ocupados, menos os bancos preferenciais de antes da roleta, geralmente, sem passageiros preferenciais. Lena tem uma teoria sobre estudantes com grandes mochilas serem passageiros preferenciais. Até pensou fazer uns adesivos para colar ao lado do das grávidas e pessoas com crianças de colo. Às vezes lê, às vezes dorme, às vezes rói as unhas.
Silva repara aquela garota há algumas semanas. Sual calças pretas skinny, suas camisetas brancas, seu all star de couro branco, suas unhas curtas, sua sutileza, seu breve sorriso após o "oi", seus olhos verdes, seus cabelos lisos, negros e bagunçados.
Alguns meses de rotina acaba por gerar um tanto quanto de proximidade. Entre conversas não muito longas, descobrem que moram no mesmo bairro e que gostam de literatura.
Num barzinho próximo à casa de Lena, ocorre o primeiro de muitos encontros. Quando de sua chegada, logo avista Silva. Seus olhos brilham mais que o de costume. Percebe um homem bonito, alto, moreno, com um charme ainda enigmático. Quando Silva avista Lena, um largo sorriso surge, tão branco, tão puro. Até as lâmpadas invejaram tamanha incandescência. 
Entre conversas e uísques, Silva é surpreendido por um encontro de lábios mais que desejado. Lena sente o calor de Silva e o tremor da criança que rouba o pote secreto de doces. Caindo em si, Silva vê a hora e argumenta que precisa ir. Dá um beijo de boa noite. Lena, dá um quase beijo de bom dia.
Durante o trajeto diário de Lena, o sorrir surge sem causa. Os fones estão abandonados em sua imensa mochila. Suas camisetas brancas, estão sendo aos poucos, substituídas por cores e decotes. 
Dentro das possibilidades, juntos descobrem outros cantos da cidade. Dentre belas palavras do poeta, o pensamento quente de Lena. Sobre a macia pele de Lena, as delicadas mãos do poeta. Entre eles uma única coisa impede: o relógio.
Havia, Lena, notado o horário. O termômetro de rua marcava 23 graus e 21:20. Nove e vinte da noite. E acaba ali com o "tenho que ir" beijo de boa noite e o "fica mais um pouco" quase beijo de bom dia.
Algo que não combina com a personalidade de Lena é questionar sobre a vida dos outros, até por que ela acredita que algo que você queira que seja sabido, se é contado e não, questionado, mas a inquietude já estava em seus olhos. Silva percebeu. Lena obrigou-se a falar sobre o bendito do horário. Silva já temia isso há algum tempo. Também já havia pensado e repensado a resposta. Tira do bolso uma folha amarela, com duas dobraduras paralelas. Na parte da frente está escrito "Com Carinho", a data de antes de antes de ontem, e suas iniciais "A. S.". Junto da folha, Silva explica que a coragem lhe faltava para entregar tamanha explicação. Alcança a carta à Lena. Dá-lhe um beijo e sai sem nada mais a pronunciar. Lena, sem entender o que está acontecendo, ou talvez não querendo crer no que está vendo, vai para sua casa. Da sala, percebe pelas risadas que brotavam do quarto de sua amiga, que ela estava acompanhada. Vai direto para seu quarto, liga o abajour, senta na cama de pernas cruzadas e abre a carta:

"Precisar-te-ei por muito mais todo o sempre,
por todo teu cheiro,
por todo teu ser...
Você é ótima, garota. Cada gota, cada doce gota de você embreaga minha verdade e me leva a outro lugar, outro sentir. Todavia, a verdade ainda está lá, tão lúcida quanto a morte. E o desejo, tão ardente quanto o fogo. E os seus lábios, tão perfeitos com as suas gírias, com os meus... Você transborda minha poesia, mas é ao lado de outra que adormeço. És tu tão próxima de tudo que sempre procurei, que me nego a abdicar do seu sorriso. Espero que compreenda."

E o mundo dela caiu. Dois meses e um pouco mais de amantismo. Passou a pegar o ônibus das 18 e 30. Não confia mais em cobradores. Acha a poesia muito barata.
Ele seguiu. Voltou a fazer hora-extra pois não tinha nada de mais interessante para fazer até às 21 horas e 20 minutos, horário que sua esposa chega do trabalho. Continua a procura de um novo olhar, em uma nova passageira.
No fone dela toca a mesma música de sempre, na mesma playlist de sempre.