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segunda-feira, 15 de julho de 2013

Não lave as mãos


"Vento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo?
Eu só preciso ter você por mais um dia
Ainda gosto de dançar
Bom dia!
Sol, girassol, verde, vento solar
Você ainda quer dançar comigo?
Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?
O meu pensamento tem a cor do seu vestido...
Vento solar e estrelas do mar [...]"

Solar. Um belo dia de sol pós dias nublados de grande calor atípico para estação vigente. Ele por distante. Ela por aí. Não foram os mais breves sorrisos que flagraram suas canções. Seja o antes do dormir, ou por próximo do acordar. Faz-se por ali, entre pensamentos, livros, dvd's piratas e estantes. Cada instante. Curtir e desfazer. Ninguém sabe, além dela e dele, mas ali permanece a notificação, onde nada há. E se simplesmente ela não voltar? E se ele acordar, como quando se tem um sonho muito bom que se queira voltar a dormir para poder saber o final...

 Depois do positivo para seu querer materno, a vida não foi por simples como mostra a foto que ele permanece a admirar, em cima da mesa de sua sala, com um sorriso de canto de boca dela. Sorriso dela, sem maquiagens odontológicas, sem plásticas faciais, com os primeiros sinais de tempo já visíveis. Outro dia ela houvera reclamado a diferença de viçosidade de sua pele. Ele conseguira ver apenas a garota de sempre, com a mesma pinta discreta no rosto, com as mesmas marcas de expressão provocadas pelo riso. Por um ano ou mais, ficara ela a viver sozinha, na cidade de Salvador. 

-Volto pro pampa semana que vem! - diz ela, animada, por telefone.

-Isso é um convite pro Uruguai ou você está dizendo que vai vir aqui pra Porto?

-Isso é um arruma logo um espaço pra mim na tua casa, porque vou morar contigo!

-Essa também vai pro teu livro de piadas do final do ano?

-Pelas minhas contas já são 13 livros de piadas do final do ano! Okay, não é piada. Consegui a transferência mais rápido que pensei. Morreu um velho em Porto Alegre. Vou substituí-lo. Agora crê?

-Sim. - Diz ele, em tom não muito receptivo.

-Esperava mais ânimo de você. Lembra de ter sempre um sim pra mim?

-Lembro. Te disse um sim. Não te prometi um sim feliz. Te prometi um sim. Como faremos?

Eles não se conversavam por meses. Trocavam pequenas frases nas redes sociais, um bom dia ou boa noite. Mas nada de muito pessoal. Houvera ele nesse tempo de solidão, envolvido-se com uma estagiária do jornal. "Belas pernas!" foi o que ele pensou quando viu a estagiária pela primeira vez. Bianca era seu nome. O jeito ainda sedutor dele aproximava-se da diagramadora. Bianca transpirava sensualidade. Do jeito que arrumava seu cabelo quando caia sobre os olhos até quando juntava o lápis que procurara o solo. Em alguma hipnose que Bianca provocara nele, ele cedeu. Suscetível a seus longos cabelos dourados como o girassol. Há uma semana Bianca houvera alugado seu apartamento para ir morar no apartamento dele, junto dele. Estavam como em lua de mel. Não houvera casamento, afinal, não era de Bianca que ele era noivo.

-Acho que ficamos um pouco distantes nesses meses. Tá sendo muito corrido tudo aqui pra mim. Dois semestres que voaram. Gente com sotaque estranho. Não são salvadorenses, ainda não me adaptei com o tal do soteropolitano  - ela suspira - Bom, como vão suas coisas? Como vai você?

-É, sempre te contei tudo... Pegaram o Amaral conversando com passarinhos e outras coisas mais malucas... enfim, me colocaram no lugar dele por tempo indeterminado.
-Se é só isso, tudo bem. Eu entendo que é uma pressão maior, ainda mais que teu livro tá na finaleira.

-Não. Não é só isso. Tem uma garota... Bianca - ela o interrompe.

-Nome de travesti! Haha... Não precisa nem continuar. Nunca quis tua fidelidade. Cachorros são fiéis. Humanos são felizes. 

-Oras! Por que diabos você sempre me interrompe?

-Desculpa...

-Ela tá morando aqui. Não posso colocá-la na rua.

-Hum... - ela respira de forma profunda - Eu pensei que tínhamos... Esquece. Eu sempre fui boba. Semana que vem te ligo.

-É só isso que você vai me dizer?

A vontade dela era de se teletransportar pra frente dele e dar um murro bem dado na cara daquele cafajeste. A fama dele nunca foi de santo. Nem a dela. Bom, provavelmente eles já foram cretinos com muita gente. Um vulcão prestes a entrar em erupção foi o que ela conteve em suas breves palavras.

-Por hoje, pode ser. Beijo, meu bem. - ela desliga.

Ele não disse que descumpriria seu pedido. Ele não negou um filho, nem um lar, nem os metais que ele houvera dado dentro daquela caixa preta que fazem mulheres chorar. Ele não negou o crescer da barriga, nem o envelhecer das faces. Ele não negou ou desmentiu os rios de poesias que foram a ela delegados. Ele saiu rumo a cidade baixa. Os tempos mudaram e não eram necessários festas open-bar para ele poder encher a cara. Andando por mais um pouco, catou uma roda de pagode. Não que ele gostasse de pagode, pelo contrário. Mas o que lá se encontrava era um pouco dela. Da alegria que um dia eles roubavam um do outro, um para o outro, por uma cama, por uma cobertura azul de céu, por uma ladeira qualquer, por uma sintonia em uma rádio aleatória de segundo plano. Bianca ligou para ele.

-Oi, meu liiiindo!

-Olá. - diz ele.

-Por que não chegou em casa ainda, meu gostosinho? Comprei uma lingerie nova que eu sei que...

-Vou chegar tarde, se eu chegar.

-Então eu já vou dormir. Beijo, meu Cacarico.

No início ele gostava desses apelidos que Bianca o dava. Mas uma semana acordando, tomando café, almoçando, trabalhando e indo dormir com essa multidão de coisas bregas, ele já estava estupefato. O celular de Bianca vibra. Ela lê, coloca algumas coisas dentro de uma bolsa e sai.

Em Salvador, depois do balde de água fria, ela não sabe o que pensar. Resolve apenas não pensar. Compra uma vodca não barata, uma lata de leite condensado e alguns Tang de pêssego. Baixa umas músicas da Vera Loca, faz uma batida alcoólica, tira da bolsa um Pocket da editora L&M, da Aghatha Christie, que havia comprado com o ticket alimentação e lê umas vinte páginas. Para quem ela estava tentando se mostrar forte? Ela não sabe. Ela não precisa. E chora. Chora pelo quão longe ela está de sua cidade. Chora pela quebra de planos. Chora pela cor dos olhos dele que eram tudo, menos da cor dos dela. Chora pelas espinhas das costas dele. Tira do dedo a aliança que ele houvera dado a ela e joga pela janela do quarto andar. Ela escuta:

-Mãe! Olha o que eu achei!

-Alguém deve ter perdido. Leva pra brincar, filha.

Ela abre a porta da casa, vai até a escada, pensa em ir até a rua para achar essa criança e pedir a aliança de volta. Ela não o faz. Volta para seu sofá, sua vodca e sua Aghatha. Desiste da Aghatha. Ela já não conseguira entender os personagens, nem seus nomes nada brasileiros, nem os assassinatos. Promete amanhã começar a ler desde o início de novo. As passagens já estavam compradas pela Azul. Chegaria segunda-feira de manhã. Hoje já é sábado. Nada de interessante nas redes sociais além das coisas de sábado, gente anunciando para o ex que está feliz sem ele, gente anunciando que vai tomar whisky para substituir a água, gente lamentando a solidão, gente declarando amor a própria cama. Patéticos, ela pensa. Ri, pois mais patética é ela. Tem a grande idéia de colocar todas suas roupas em cima da cama, montar looks de festa e se fotografar para postar e ver se alguém ainda curte sua maquiagem. Assim também já classifica as roupas que deverá levar para o sul e as que doará por lá mesmo, afinal, ninguém merece pagar valores a mais na hora do embarque. O vestidinho vermelho foi o campeão da noite. Maquiagem não muito carregada nos olhos, batom vermelho, salto e carteira pretos com detalhes em dourado, relógio dourado em um dos pulsos, no outro muitas pulseiras, brinco preto perolado gigante e a correntinha que ganhou de sua mãe que nunca tira ou substitui. Os móveis ela já havia negociado com o dono de seu apartamento. Não havia mais nada para fazer naquela noite. A vodca a olha. Ela olha para a vodca. O som vai para Kid Abelha. Ela resolve escrever, como por muito já fizera. Manda-lhe um e-mail.

Ele voltando completamente torto para casa, reclamando por não ter dinheiro para o táxi, reclamando por não lembrar de suas senhas do banco. Ele poderia pedir para alguém levá-lo, poderia dar a chave para um desconhecido dirigir até sua casa, poderia esperar o porre passar. Mas não. Ele foi dirigindo. Alguém mais embriagado do que ele invade a contra mão. Para desviar, acaba por bater em um poste. Ele não se lembra de nada até acordar as seis da tarde no HPS. Algumas fraturas.  Ele nunca foi muito bom com números, o único número que sabe de cor é o do jornal e da NET. Ele dá o número do jornal para uma enfermeira. Pede para avisar a Bianca que ele está no hospital e assim que der ele liga. Como ele tinha plano de saúde, o transferiram para outro hospital, onde ficou em um quarto só para ele. Ele ficaria no hospital por mais até amanhã no mínimo enquanto faziam exames mais detalhados. Segunda-feira entregam um buquê de rosas brancas no quarto dele.

O vôo chega a Porto Alegre sem muitos atrasos. Os dias estavam quentes mesmo sendo inverno, o que não ocasionava neblina nem maiores complicações. Ela deixa suas malas em um guarda-volumes do aeroporto. Vai direto ao jornal, já que o telefone dele dava fora de área ou desligado. Lá um rapazote dá a notícia do acidente. Ela diz que é prima dele e o garoto acaba por dar o endereço do hospital e o quarto em que ele está. Quando ela chega no hospital ele está fazendo exames e o horário de visita é do meio-dia até o meio-dia e meia. Ela resolve aguardar o horário para vê-lo. O sorrir toma conta do quarto. Ela diz:

-Você não podia esperar um pouco pra já começar a me dar preocupações?

Ela dá uma rosa vermelha para ele e dá um beijo na testa do doente.

-Pensei que você chegaria por quarta ou quinta.

-É que eu queria muito te ver no hospital.

Ambos riem. Ela olha para o buquê em cima do balcão lateral, onde guardam travesseiros, lençóis e cobertores.

-A Bibi é mais gentil que eu pelo visto. Mas ela errou na cor.

-Não sei quem enviou. - diz ele.

-Tem um cartão. Vou ler para você. "Desculpe-me, Cacarico. Não sei se você já sabe, mas pedi demissão lá do jornal pois me contrataram como efetiva da ZH. Vou morar com um amigo lá perto. Já tirei minhas coisas  da sua casa. Melhoras. Bianca."

-Como as coisas são rápidas! Saio para beber num dia e quando volto os dinossauros não existem mais!

-Pois a travesti te deu um bolo! Bom, agora que estou aqui e já terminei com seu casamento, destruí seu carro, você perdeu 2 dedos do pé esquerdo e está moribundo em uma cama de hospital, posso te abandonar, ir para a França lançar um livro e ficar rica, linda e glamourosa. E meu plano diabólico estará concluído! Muhahaha!!!

-Ou você pode esperar eu sair daqui as três horas da tarde, e vamos direto para meu apartamento, temos nossos 7 filhos, escrevemos um livro, vamos pra França, abrimos um residencial geriátrico e ficamos ricos, lindos, não tão glamourosos e felizes. Que acha?

-Pode ser. Pode ser muito bom!

-Você disse que perdi 2 dedos do pé esquerdo?

-Disse. Mas não era verdade.

-Ufa! - diz ele.

-Você perdeu só um dedo. O outro só não vai mais se mexer!

Chegando na casa dele, percebe-se que Bianca levou algo além das coisas dela. Levou o sofá, a televisão, a mesa de centro, a geladeira e o Mingau. O Mingau era o gato dele.

-Te enviei um e-mail. Se a garota não roubou a sua internet, dá uma olhada depois. Ah! Antes de escrever o e-mail, joguei fora a aliança... mas caixinha eu trouxe.

Ela vai ao banheiro. Ele pega o celular dela e lê o e-mail, que dizia:

"Por algumas vezes passei por você na rua, e não te vi. Uma vez comprei um ingresso de um cara que juro, só podia ser você, mas você não me viu. Por quantas vezes você esteve na minha mão e eu te deixei pelo vão dos meus dedos. Por quantos verões, por quantos carnavais desejei o seu riso solto, sem sequer saber da sua existência. Lembro quando te encontrei na biblioteca da escola trocando seu recreio por um livro, era uma projeção de você. Eu te projeto até hoje. Lembro quando eu no lado direito da rua direita via você no lado esquerdo ajudando um cego a atravessar a rua. Você sempre tão esquerdo. De partidos à teorias. De canções às suas mulheres. Ah! Por quantas eu esperei você se livrar. Por quantas te mostrei que eram boas e te disse para prosseguir. Eu só quero que sejamos felizes. Tantas melhores do que eu. Eu abdicaria de você para o seu bem. Só que hoje não é isso. Sou o seu bem, meu bem. E mesmo que por um telefonema eu quisesse te detonar com uma bomba nuclear, é só você que tem esse dom de me acordar. Amar é bem melhor que ver o amor passar. Se algum dia me disse que sou solar, você é o meu vento. Tudo bem se não der certo, meu bem, nós chegamos tão perto. Não desisti de você."

Ela sai do banheiro.

-Em nenhum momento eu preferi alguma outra. Se fosse preciso mil anos, eu te esperaria, fosse só ou acompanhado. Sempre te esperei.

Ele puxa ela para dar um beijo. Ele está em uma cadeira de rodas pois quebrou as duas pernas. Ela sorri.

-Se eu pudesse te dava um abraço apertado.

-Mas você pode. Quebrei as pernas, não os braços.

-Não é por isso. É que a Bibi levou seu papel higiênico, seu sabonete e a torneira do banheiro.

-Oras, só não me levou as cuecas! E suas mãos... dane-se! Quero seu abraço sem lavar as mãos mesmo, mas vá com calma se não tu mata o véio!


Passagem da música Um Girassol da Cor do seu Cabelo, de Ira!

terça-feira, 2 de julho de 2013

Vamos fugir



- Vamos fugir! - diz ela.
sobrancelha esquerda dele abre uma curva, a deixar nítida sua incerteza.
- Pra onde haja um tobogã, onde a gente escorregue?
- Com esse calor seria ótimo. Mas não. Pensei na gente fugir como um casal adolescente que foge da casa dos pais e volta arrependido logo depois que acaba a grana da mesada. Ou tipo aqueles casais que aparecem nas páginas policiais, só que sem estarmos mortos no final.
- Você diz fugir com uma barraca, pra um mato qualquer? Eu tenho o jornal e você tem o seu mestrado pela frente.
- E é por isso que preciso mudar de ares. Pela primeira vez não precisaremos inventar algo para eu poder te tirar da sua casa. Você está só. Eu estou só. Pede férias lá no jornal. Enchemos duas mochilas, gastamos nossos cartões de crédito. Eu troco os meus pontos na Panvel. Você troca as sua milhas aéreas.
- Eu não tenho milhas aéreas!
- Não importa. A gente coloca seu celular e aquele par de Havaianas 44 que você ganhou de amigo secreto há 2 anos para vender no Mercado Livre. Damos um jeito de ir. Sempre damos o nosso jeito.
- Seus argumentos são ótimos... Tá bom então!
- Então já manda o e-mail pro Amaral pedindo tuas férias.
- Enquanto você tá indo, eu já tô vindo. Eu tava vendo umas ofertas num site de promoções de pacotes em hotéis. Comprando agora pra depois da virada, tem uns preços muito bons. Pedi 15 dias pro Amaral. E... - diz ele, com uma cara de decepção.
- E?
- E o que é que eu não consigo, né. Os últimos 15 dias de janeiro são nossos!
Ele faz cócegas por perto das costelas dela. O pensamento dela na hora já foi de comprar aquelas mochilas grandes de escoteiro e começar a encher de imediato.
- Ah! E deixa pra comprar as mochilas e os trambucos, que eu sei que você vai arrumar, depois do fim do ano. Ainda temos que sobreviver ao natal.
Ele encara a face daquela mulher. Mulher dele. Mais dele que de todos os outros. Os outros já por muito se foram. Mesmo ela totalmente livre, mesmo sem metais pendurados aos dedos, mesmo sem presentes caros, mesmo sem promessas de um futuro seguro, mesmo assim, ela volta a procurá-lo, volta a sentí-lo, volta nem que seja para convidá-lo a ir até a padaria depois do trabalho para juntos fazer um café da tarde com torradas e café com leite. Tão seguro da volta dela quanto do gato à casa dos donos. Seguro dele ficar assim, aos pedaços por ela, a impregnar os pensamentos dela, ele sorri. Pelo sorriso dele, ela também sorri.
- Já decidiu o que vai dar para seu filho de natal? - diz ela.
- Olha... Pensei numa esteira! Ele tá um pouco... você sabe, gordinho.
- O garoto tem 6 anos. Prefere um videogame, seu doido!
- Boa! Um videogame que faça ele se mexer! Caro. Não vamos mais viajar.
- Assim também não. Sejamos viáveis para ambos lados.
- Vou dar uma bola do Grêmio, a minha coleção de gibis e um gibi novo, para ele começar a coleção dele. E então vou falar para ele que este é um importante ritual familiar, pois em todo natal em que a soma dos números dê 3, e houver uma criança na família com o dobro da idade da soma do ano, o pai então dará para o filho a sua própria coleção de gibis. E que no próximo ano, só será desvendado o mistério do ritual familiar, caso ele atinja o índice de massa corpórea de uma criança normal pra idade dele.
- É uma boa ideia. Acho que ele não vai entender muito bem todo esse lance, porque nem eu entendi direito, mas no fim, a bola vai resolver o sedentarismo dele. - ela beija-o. - Bom, tenho que ir pra casa pra dar comida pro Inácio.
- Teu peixe beta não vai morrer por um dia sem comida. Comprei um vinho ótimo pra gente. Fica aqui hoje.
- O que você me pede sorrindo que eu não faço chorando? Ou seria o contrário?

[...]

terça-feira, 25 de junho de 2013

Praia dos Espelhos - Parte I



O sol brilhava forte na rua. Eles ainda estavam a fazer o que de melhor fazem quando a oportunidade de estar juntos se concretiza. As pernas, não se sabem mais qual é de quem. Os lençóis brancos, de algodão puro, transmitem o que sentem estes dois por agora. Ela já acordada está, apenas a aproveitar o belo sono restante no corpo de seu amado. A paz é pertinente ao tormento anterior. Tempestade de incerteza por uma possível paternidade. De uma não maternidade. Ela se considera plena para colocar uma vida ao mundo. Ela quer que ele dê uma vida a ela por ele tanto já ter feito isso com seu sorriso e sua aventura. Ele já tem um filho, um lindo garoto de aproximadamente 10 anos, fruto de uma relação não muito estável. Reza a lenda que seu filho veio por um aperto de mão ou algo tão rápido quanto. Um espirro ou uma tosse talvez. 

Não muito tardou para ele acordar e ver o rosto dela a admirar-lhe. Ele sorri e resmunga algo a reclamar o tanto de vida que eles delegam à cama. Ela dá um beijo em sua testa, levanta-se, cobre-se com um roupão de seda de cor coral que houvera deixado sobre a poltrona, abre a cortina e a porta que dá para a sacada. O sol invade o quarto, tornando o branco dos lençóis mais brilhante que já fora. A brisa. O agora comprido cabelo dela voa num movimento de dança acompanhado do ballet do roupão. É realmente lindo aqui, exclama ele que já se encontrava ao pé do ouvido dela, com a voz rouca do acordar, a olhar para o distante. Ela responde que não houvera tempo que não fosse lindo quando a possibilidade do encontro se faz. O abraço que ela tanto gosta se repete naquela paisagem que se aproxima do paraíso. Os braços dele envolvem a cintura de pele morena por de baixo do roupão de seda. Os braços dela o apertam por cima, e uma de suas mãos executa o vício de desarrumar-lhe os cabelos. Cabelos milagrosamente curtos. Um bom dia em alto e bom som é expedido pela boca de grandes lábios dela. Um muito bom em meio um sorriso é expedido pela pequena boca rosada dele. Saem do quarto do hotel rumo a um quiosque beira-mar. Duas águas-de-coco são o pedido. Ainda falta algum tempo para o almoço. Ela conta que descobriu um restaurante espetacular que fica dentro dágua.

- De onde você tira tantas ideias e por que ainda me escolhe para passar suas férias a seu lado, nessa magnífica praia. De onde você descobre esses lugares? Praia dos Espelhos! Você sempre se supera.

- Você não gostou do meu convite?

- Um hotel ótimo, numa paisagem ótima, com uma programação ótima ao seu lado, tem como não gostar? Tem como dar um replay e ficar aqui vagabundeando pro resto de tempo que me falta? Já devo ter dito isso umas mil, talvez mais vezes, mas você é ótima. Louca e imprevisivelmente ótima.

- Louca e imprevisível o suficiente para você não se negar aos meus convites.
Ambos sorriem. Lembram de sua última viagem com mais de uma semana juntos. Na época, fazia um pouco mais de um ano que ele estava a trabalhar no jornal e ela tinha acabado de concluir a faculdade e estava pleiteando seu mestrado. Fugiram do mundo por 3 semanas naquele verão. Sem celulares, sem redes sociais, sem maiores preocupações além de o que iriam comer no outro dia e de como iriam fazer para chegar no próximo hostel. E quantas histórias eles conseguiram em cada hostel que passaram.

- Ainda tenho dó do casal tibetano. Você lembra? - disse ela.

- Como eu esqueceria, se ensinei a maioria dos palavrões em português pra eles... Só não contei que eram palavrões!

- O melhor foi a cara da recepcionista burra quando eles foram embora e largaram um "puta loira" como se fosse um cumprimento de despedida. Imagina o estrago deles pegando o ônibus... Você acabou com as férias deles!

- Não. Só dei um pouco mais de emoção!
E as histórias não paravam. Recordam que quando chegaram no Espírito Santo, tinham dinheiro para voltar só até Santa Catarina.

- Ainda bem que meus 3 últimos casamentos me ensinaram a mentir bem. Não sei até hoje como que consegui ajudar aquele pescador. Logo eu, que nunca havia pescado na vida.

- Se fosse eu pescando, teria pego bem mais peixes. Você é bem melhor em se casar e se separar. Naquela época eram só 3 casamentos. Hoje são quantos mesmo?

- Uns 7?

- Talvez um pouco mais... hahaha!

- Você não se decide em colocar um ponto final nisso. Tu sabe que a hora que você quiser... - ela o interrompe.

- Morto pelo marido da minha futura esposa! Lembra disso?

- Ah se lembro! Cada vez que te beijava, mais próximo dos tiros eu me sentia.

- Pois é. Ele queria tanto uma família, filhos... Eu realmente acreditava nele. Boba eu. Ele também é humano. Fez certo em ter engravidado a garota da padaria. Eu nunca podia estar com ele mesmo.

Ele olha para o relógio.

- Hora do almoço? - Pergunta ela.

- Também. Mas eu só tava vendo que a hora de te roubar está chegando.

- Você está me roubando faz uns onze anos...

- Já leu a última versão do meu livro?

- Não sei se era a última, mas pra mim já tá mais que na hora de mandar pra editora. Tem uma amiga minha, daquela editora que trocou de nome há pouco tempo... Ah! Você sabe aquela lésbica que ficava com a irmã do Rodrigo... Tenho o telefone dela. Te dou assim que voltarmos pro hotel.

Ele olha para a face daquela mulher. Olha para toda aquela matraca. Uma metralhadora de palavras. De problemas e soluções. Lembra que já foi tanta coisa ao lado dela. De encanador a amiga russa.

- Para de ficar me olhando e vamos logo pegar um táxi. Lugares bons costumam lotar!

Ele dá um beijo nela.

- Você não pára de falar nunca, né? - diz ele

- Você bem sabe que eu paro sim, quando você me ocupa o suficiente...

- Okay! Vamos logo para esse magnífico, esplendoroso e fantástico restaurante que fica dentro dágua e lota rápido.

- Dramáááático! Hahaha!

Almoçam no bendito restaurante. Além da paisagem maravilhosa e do valor estrondoso dos pratos, a comida não era a quinta maravilha como nas fotografias. E ambos pensam no arroz com feijão preto, bife e bata frita. Acordam em jantar no hotel mesmo. Mas para janta ainda falta muito. À tarde, saem para conhecer a praia. Praia sem crianças. Bem diferente das praias do sul. Água azul, pessoas bonitas, comidas caras, gente com sotaque de difícil compreensão. Enfim, uma sombra. Ela senta ao chão. Ele deita e coloca a cabela ao colo dela.

- O melhor cafuné do mundo! - diz ele.

- O maior exagerado do mundo!

- Você é linda!

O silêncio das vozes permanece por alguns instantes. Apenas o barulho do vento era apreciado. Até que os pensamentos dela escapam.

- Quero um filho teu.

O silêncio permanece por mais alguns instantes. Ele não acreditara no que ouvira. Também não esperava esta frase dela, ainda mais nesse momento. Muitas possibilidades passam rápidas a mente dele.

- Tá bom! - diz ele.

- Sério? Assim, sem perguntas? De boa?

- Sempre terei um sim para você. Por mais absurda que pareçam as suas ideias, elas são sempre ótimas tanto quanto você. Se queres um filho meu, a única coisa que me permito dizer é um sim. Um sim de sim, quero um vínculo com você pro resto da vida. Quero um lindo vínculo tão bonito e esperto quanto você, quero um vínculo que me chame de pai, que me ocupe todas as folgas, que me ocupe todas as não folgas, que preencha minhas colunas, meus livros, minha vida, nossas vidas.

Uma completa romântica disfarçada em pele de mulher moderna, independente e autossuficiente. Ele sabe disso. Sempre soube. E por isso é com ele que ela se confessa, é com ele que ela foge sempre, é ele o único pai que ela pudera imaginar.


[continua]

domingo, 19 de maio de 2013

Fones de ouvido


No fone dela toca a mesma música de sempre, na mesma playlist de sempre.
Silva. Adriano Silva é o nome dele. Ganhou a fama de Silva no quartel, há uns 5 anos atrás, quando Lula conquistou a presidência.
Lena. Eduarda Faleiro é o nome dela. Ganhou a fama de Lena de sua tia, que por algum motivo ainda não compreendido, chamava-a assim aos gritos para parar de jogar bola no meio da rua junto dos meninos.
Lena costumava pegar o ônibus das 18 horas e 15 minutos, do qual Silva é o cobrador. O ônibus quase sempre está com todos os assentos ocupados, menos os bancos preferenciais de antes da roleta, geralmente, sem passageiros preferenciais. Lena tem uma teoria sobre estudantes com grandes mochilas serem passageiros preferenciais. Até pensou fazer uns adesivos para colar ao lado do das grávidas e pessoas com crianças de colo. Às vezes lê, às vezes dorme, às vezes rói as unhas.
Silva repara aquela garota há algumas semanas. Sual calças pretas skinny, suas camisetas brancas, seu all star de couro branco, suas unhas curtas, sua sutileza, seu breve sorriso após o "oi", seus olhos verdes, seus cabelos lisos, negros e bagunçados.
Alguns meses de rotina acaba por gerar um tanto quanto de proximidade. Entre conversas não muito longas, descobrem que moram no mesmo bairro e que gostam de literatura.
Num barzinho próximo à casa de Lena, ocorre o primeiro de muitos encontros. Quando de sua chegada, logo avista Silva. Seus olhos brilham mais que o de costume. Percebe um homem bonito, alto, moreno, com um charme ainda enigmático. Quando Silva avista Lena, um largo sorriso surge, tão branco, tão puro. Até as lâmpadas invejaram tamanha incandescência. 
Entre conversas e uísques, Silva é surpreendido por um encontro de lábios mais que desejado. Lena sente o calor de Silva e o tremor da criança que rouba o pote secreto de doces. Caindo em si, Silva vê a hora e argumenta que precisa ir. Dá um beijo de boa noite. Lena, dá um quase beijo de bom dia.
Durante o trajeto diário de Lena, o sorrir surge sem causa. Os fones estão abandonados em sua imensa mochila. Suas camisetas brancas, estão sendo aos poucos, substituídas por cores e decotes. 
Dentro das possibilidades, juntos descobrem outros cantos da cidade. Dentre belas palavras do poeta, o pensamento quente de Lena. Sobre a macia pele de Lena, as delicadas mãos do poeta. Entre eles uma única coisa impede: o relógio.
Havia, Lena, notado o horário. O termômetro de rua marcava 23 graus e 21:20. Nove e vinte da noite. E acaba ali com o "tenho que ir" beijo de boa noite e o "fica mais um pouco" quase beijo de bom dia.
Algo que não combina com a personalidade de Lena é questionar sobre a vida dos outros, até por que ela acredita que algo que você queira que seja sabido, se é contado e não, questionado, mas a inquietude já estava em seus olhos. Silva percebeu. Lena obrigou-se a falar sobre o bendito do horário. Silva já temia isso há algum tempo. Também já havia pensado e repensado a resposta. Tira do bolso uma folha amarela, com duas dobraduras paralelas. Na parte da frente está escrito "Com Carinho", a data de antes de antes de ontem, e suas iniciais "A. S.". Junto da folha, Silva explica que a coragem lhe faltava para entregar tamanha explicação. Alcança a carta à Lena. Dá-lhe um beijo e sai sem nada mais a pronunciar. Lena, sem entender o que está acontecendo, ou talvez não querendo crer no que está vendo, vai para sua casa. Da sala, percebe pelas risadas que brotavam do quarto de sua amiga, que ela estava acompanhada. Vai direto para seu quarto, liga o abajour, senta na cama de pernas cruzadas e abre a carta:

"Precisar-te-ei por muito mais todo o sempre,
por todo teu cheiro,
por todo teu ser...
Você é ótima, garota. Cada gota, cada doce gota de você embreaga minha verdade e me leva a outro lugar, outro sentir. Todavia, a verdade ainda está lá, tão lúcida quanto a morte. E o desejo, tão ardente quanto o fogo. E os seus lábios, tão perfeitos com as suas gírias, com os meus... Você transborda minha poesia, mas é ao lado de outra que adormeço. És tu tão próxima de tudo que sempre procurei, que me nego a abdicar do seu sorriso. Espero que compreenda."

E o mundo dela caiu. Dois meses e um pouco mais de amantismo. Passou a pegar o ônibus das 18 e 30. Não confia mais em cobradores. Acha a poesia muito barata.
Ele seguiu. Voltou a fazer hora-extra pois não tinha nada de mais interessante para fazer até às 21 horas e 20 minutos, horário que sua esposa chega do trabalho. Continua a procura de um novo olhar, em uma nova passageira.
No fone dela toca a mesma música de sempre, na mesma playlist de sempre.


domingo, 11 de novembro de 2012

Vergonha azul

Vergonha de ser gremista. Foi o que eu senti hoje, durante alguns minutos, enquanto alguns torcedores do Grêmio urravam gritos de guerra ofensivos aos colorados. Uniram-se não para exaltar as qualidades do time do coração, e sim, para agredir com palavras baixas e gestos estúpidos. Dignos de vergonha alheia. Pena.