Sinto a cidade como se fosse um corpo. Um organismo vivo e apaixonado. Uma súplica por um amor encontrado numa noite sem pretensão. Sinto o inspirar e o suspirar como a palpitação rápida do meu coração ao subir as escadas da casa. Sinto a cidade como se fosse um corpo: o meu. Esperando para ser explorado, descoberto, experimentado.
O sol das três e meia da tarde caia sobre as ruas feitas de memórias e pedras cuidadosamente alocadas à mão sobre um terreno-palco para grandes amores, pedras cuidadosamente desgastadas pelos tempo que se foi, e pelo tempo que há de vir. O sol trazia um cheiro familiar. O fumo, o frio, o sol, o branco e amarelo das paredes das casas, o cinza dos longos casacos, e os cachecóis que mais parecem cobertores por volta do pescoço das mulheres, tão lindas e tão pequenas. Realmente elas são miúdas. Eu não, mas mesmo assim teimam por me chamar. O charme do disparar das palavras - palavras escolhidas pelo hábito - parecem surrealmente esculpidas para agradar o meu ouvir. Corriqueiras e ao mesmo belas ao serem proferidas por lábios tão pequenos e doces, como os dele. Era só mais um dia comum, de uma fuga comum, pois não importa em qual lado do Atlântico eu esteja, sempre encontro algo para fugir. As ruas estavam enfeitadas para o Natal. Num pequeno largo que aqui chamam de praça, haviam inúmeras árvores feitas de materiais alternativos, desde garrafas, a esponjas e livros.
- É uma pena, mas em breve estas árvores não mais estarão aqui.
- De onde venho, seria só o esforço de colocá-las para não mais estarem. O povo do Brasil é mais rápido!
As comparações surgem a todo momento. É inevitável. Ok, tenho saudade! Mas surpreendentemente, não das pessoas, e sim do que é nosso, nossa comida, nosso sotaque característico, nossa cultura tão plural. Sinto saudade das ruas de Porto Alegre, mesmo tendo em Évora uma cidade que me abraça, que me aquece. Saudade nem sempre exprime vontade de ter de volta, e a vontade de ter de volta nem sempre vem cheia de saudade. Em algum lugar da internet definem saudade como sentimento de mágoa e nostalgia, causado pela ausência, desaparecimento, distância ou privação, mas não sei se concordo plenamente com esta definição. E no final, todas as línguas não passam disso: definições. Regras encadeadas para significar o que se sente. Um universo simbólico de representação da cabeça humana. Será que somos os únicos animais a terem tal sistema? Ao menos, com tamanha complexidade, acredito que sim. E assim, na sua origem mais remota, entre o serpentear de um pré-latim e do pensamento, surge latente, uma língua: elemento máximo necessário para caracterização de uma cultura. Como me encontrar numa cultura que não é minha? Simples, perca-se.
- E então, tornou-se hábito andar assim?
- Não é hábito! É que hoje saí atrasada. Coloquei o vestido logo que acordei e não daria tempo de tirar e recolocar o vestido, só para estar adequada. Um lenço e um casaco são mais rápidos e disfarçam na mesma!
Parece inevitável o procurar da mão sobre o fino tecido. E mais uma vez, o arrepio do seio vence a moda. Gosto da correnteza que rege o meu corpo, natural como deve ser. Gosto como sinto essa cidade.
- Estou atrasado...
- Me deixa aqui. Não tem problema.
- Mesmo?!
O beijo rápido e silencioso justaposto com o abrir da porta afirma que realmente não existe problema algum. Se ele soubesse que com o fechar da porta depois do "A gente se fala daqui um bocado!" eu teria o prazer de poder participar desta fotografia em tempo real, o prazer de caminhar com algum frio na ponta do nariz, o prazer de enxergar o brilho que só a miopia proporciona, e enfim, o prazer de conseguir retomar minha vontade de escrever, tenho certeza que ele faria o favor de me expulsar de dentro do carro!
O sol de um quarto para as quatro me lembrou o sol de Maceió: limpo, pouco intenso ao queimar a pele, muito intenso em marcar emoções. Sinto a cidade como se fosse um corpo. Obrigada pelas aventuras, Évora.
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