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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Uma forma de se importar - Lyer



O gerente foi recebido na loja Empório da Festa com energia. Todos os funcionários saudaram de bom humor quando viram que Caio voltara das férias em plena quarta-feira. Ele aspirou o ar sempre perfumado do lugar com sentimento de volta ao lar. Caio adorava trabalhar ali.
- Achei que só ia chegar na segunda que vem - gritou a bonita mulher de cabelos rosa atrás do grande balcão no fundo da loja.
- Sabia que a surpresa iria encher seus coraçãozinhos de alegria! - Caio piscou para ela, formando um coração com as mãos e o movendo como que batesse em seu peito.
Todos riram e Verônica fez que não com a cabeça. Ambos tinham alguns anos antes dos 30 e eram amigos desde que se conheceram naquela loja.
Caio foi para o vestiário masculino e colocou seu uniforme branco com detalhes em verde, com seu nome bordado no peito e o símbolo da loja de presentes. Ao retornar a loja, viu um rosto conhecido em frente ao balcão. O homem em roupas sociais ajeitava um montinho de papeis para colocar dentro de sua maleta. Tinha o rosto cansado e olhar distante, como sempre.
- Shade! - Caio o cumprimentou - Quem é vivo sempre aparece!
- Ah, e aí? - Shade lhe deu um sorriso triste - Só recolhendo algumas notas. Voltou das férias, é?
- Sabe como é - Caio levou a mão ao queixo, fazendo pose de séria reflexão - Minha simples presença aqui parece fazer nosso lucro subir.
- Não tem como negar - ele riu - Vi algumas velhinhas passarem dando um suspiro de saudade para loja.
- Anda fazendo alguma coisa interessante? - Caio apertou os olhos para ele - Conheceu alguma garota interessante?
- Só o de sempre - Shade terminou de guardar suas coisas - Nada de interessante…
- Ok - disse Caio, decepcionado - Seu aniversário é nesse sábado, né?
- É? - o outro riu, levemente sem jeito - Acho que sim. Como você lembra dessas coisas?
- Tsc tsc - Caio balançou a cabeça em reprovação, então martelou as palavras no balcão com o nó do dedo - Vamos festejar essa sexta, pra comemorar desde o primeiro segundo.
- Eu não acho que…
- Tem coisa melhor pra fazer? Duvido muito - Caio piscou para o amigo - Vou arranjar algumas companhias de verdade. Eu te aviso quando decidir o lugar, ok?
- Ok.
Eles se despediram e Caio observou enquanto Shade ia embora. Sentiu que estava ignorando alguma coisa e de repente percebeu olhos o observando. Olhou lentamente para a direita e viu um rosto de boneca em tamanho real o fitar com desinteresse mórbido. Uma garota de cabelo branco e mechas verdes o encarava com monotonia, sentada em uma cadeira atrás do balcão, no caixa mais próximo da parede. Não tinha como ela ter passado por ele sem ele notar, ainda mais estando tão perto.
- D-de onde você saiu? - Caio sorriu, perplexo.

- Eu já estava aqui quando você chegou - a garota respondeu, impassível - Entreguei as notas para o contador.
- Desculpe. Eu estava distraído - olhou o nome no uniforme - Monique? Ah, sim! O chefe falou de você. A colega transferida?
- Sim.
- Meu nome é Caio, sou o gerente daqui - ele fez um floreio ao estender a mão para cumprimentá-la - É um prazer receber mais uma linda mulher na nossa equipe!
Ela examinou a mão dele inexpressivamente por alguns instantes.
- Hm - ela concordou - Verônica me contou que você era estranho.
Caio riu, levando a mão ao peito e franzindo o cenho como se estivesse ofendido.
- O amor com certeza é um sentimento estranho! A paixão a primeira vista leva um homem a cometer ousadias como essa. Mas sou um cavalheiro e nunca faria nada pecaminoso na presença de uma dama de tamanho garbo e elegância.
Monique continuou a fitá-lo, a face tão livre de emoções quanto um lago subterrâneo era de ondas.
- Desista, Caio - Verônica o estocou pelas costas com o dedo - Essa aí ganhou o apelido de “manequim”.
- Me rendo - Caio suspirou - Desculpe a brincadeira, Monique. Como você disse, sou meio estranho, mas tenho certeza que vamos nos dar bem. Vamos dar nosso melhor.
- Hm - ela concordou e voltou a atenção a seu caderno de desenho, aonde rascunhava alguma coisa.
Caio voltou aos seus afazeres. Examinou as estantes, conversou com alguns funcionários, contou dinheiro e recebeu clientes fieis. Sempre sorrindo, fazendo piadas ou suas poses dramáticas com frases de efeito. Sempre de bom humor, paciente e atencioso. Alguns funcionários sentiam o quanto o ar da loja ficava mais agradável quando Caio estava ali. Alguns dentre esses percebiam isso com mais clareza.
No dia seguinte, enquanto a rotina perseguia muitos, Caio não tinha dedos suficientes para contar as pequenas e maravilhosas experiências que aconteceram durante o dia. Desempacotando produtos, examinando problemas, reinventando velhas fórmulas e descobrindo pequenas obras de arte. Caio quase tropeçou em Monique, que se agachara para organizar uma infinidade de velas aromáticas coloridas em um dos corredores perto dos caixas.
- Uau - ele fez, ao ver as cores se combinando em harmonia - Muito bom!
- Não está pronto - disse ela, sem olhar para ele e parando o que estava fazendo.
- Ah, não gosta de plateia? - ele coçou a cabeça - Tudo bem. Artistas devem ser respeitados.
Ela olhou para ele com seus olhos inexpressivos enquanto ele se afastava. No balcão de caixa ele escorou-se de braços cruzados para olhar para a loja, pensando.
- Qual foi? - disse Verônica, atrás do caixa - Ainda triste por não conseguir assediar a novata?
- Tsc - fez ele - Ciúmes não faz bem para a pele, Vê. Ai! - ele se virou para ela, depois de ter levado um soco nas costas.
- Se enxerga - disse ela, furiosa.
Ele deu um risinho, massageando o lombo.
- Sabe algum lugar divertido pra se ir amanhã a noite? - Verônica o olhou de viés, levantando o sobrolho - Pra tirar o Shade de casa.
- Ah! - ela pensou um pouco e sorriu - Tem um bar muito bom praticamente na esquina da casa dele, Noite de Lua. Sempre tem uma banda indie se apresentando.
- Assustador - eles riram - Quer vir junto?
- Hm… - ela voltou a lixar sua unha - Por que não convida a novata?
- Pode levar um dos seus namoradinhos delinquentes, se quiser - ele a provocou.
- Eu não fico com idiotas - ela o olhou de cima a baixo - Eu vou. Pelo Shade. Qualquer coisa pra ele sair do mundo da lua de vez em quando.
- Perfeito - ele fez uma leve mesura.
Caio olhou para Monique, voltando silenciosamente para seu lugar atrás do último caixa. As velas que ela estava arrumando faziam ele sentir “perfumado” de alguma forma.
- Caramba - ele disse a ela - Realmente temos uma artista entre nós.
- Hm - fez Monique, passando por ele enquanto tirava uma mecha verde da frente do olho.
- Espero que não fiquem com pena de comprar as velas por medo de desorganizar - Verônica riu.
- Oh - Monique olhou para a estante - Eu não devia ter feito isso.
- Não, não! - disse Caio - Está ótimo! Deixe como está!
- Viu só? - Verônica assoprou as unhas - Já estão com pena. Ai!
Verônica levou a mão a testa, onde Caio lhe tinha acertado um peteleco. Ela mostrou a língua ante aos olhos apertados de seu superior. Apesar das brincadeiras do gerente, ninguém naquela loja ousava enfrentar o famigerado “modo sério” de Caio. Monique olhava para as velas, pensativa.
- Vai fazer alguma coisa amanhã depois do expediente, Monique? - Caio desviou a atenção do assunto.
- Vou pra casa - ela o olhou, sem entender lógica daquele questionamento.
- Ah, sim - ele sorriu, sem jeito - Queria saber se você não quer ir com a gente num bar aqui perto. Descontrair e relaxar ao som de música ruim e bebidas estranhas - ele indicou Verônica com a cabeça, que parecia levemente emburrada.
- Eu nunca bebi álcool - ela revelou.
- Não? - ele sorriu, dando de ombros - Há uma primeira vez pra tudo. Vamos comemorar nossas chegadas - ele indicou ele e Monique - E o aniversário de um amigo, nosso excelentíssimo contador.
- Essa é a posição que um gerente deveria adotar com seus empregados? - ela questionou, mas a pergunta não parecia ser uma crítica.
- Isso - Caio ajeitou sua franja de forma épica - é o que o MELHOR gerente tem de obrigação para com seus funcionários.
- Hm - ela fez, voltando ao seu lugar.
- Isso é um sim?
- Hm - ela concordou.
Caio fez uma careta para Verônica, como que pedindo socorro, e ela revirou os olhos para Monique e atirou na própria cabeça com o dedo.
Na manhã de sexta, Caio tentou contato com Shade. Mas ele não atendia o telefone, então deixou uma mensagem falando sobre o local de encontro e o horário. Chegou na Empório da Festa com passos largos e confiantes. Mesmo amando seu local de trabalho, saber que a diversão da sexta-feira estava próxima era animador. Desenvolvera uma técnica de percepção baseada no ensinamento do macaco do Rei Leão, se colocou em estado de “ver além do que você vê” e, assim, conseguiu enxergar Monique chegando de longe.
Era a primeira vez que a via sem o uniforme da loja, já que ela parecia ter sido treinada por ninjas para esconder sua presença. A garota de mechas verdes e cabelo branco vestia um moletom grosso cinza claro por cima de um short jeans discreto, meia calça e tênis All Star verde. Carregava em sua pasta preta o caderno de desenho e uma infinidade de tons de lápis de cor. Ele deu a ela um largo sorriso de cumprimento e ela pareceu levemente surpresa. Monique respondeu acenando com a mão e seguiu para o vestiário. De trás do balcão, Caio acompanhou-a com o olhar. Ele voltou a visão para a entrada e deu de cara com um olhar condenador e mal humorado de Verônica, que também chegava. A garota de cabelos rosas usava uma jaqueta de couro preto, calças jeans e botas marrons, além de uma touca de lã cinza.
- Olá pra você também - sorriu ele, levantando as mãos como se se rendesse.
- Hm - rosnou ela e seguiu na mesma direção da outra.
Caio suspirou e foi abrir a loja. O dia passou como qualquer outro, com a ansiedade de Caio aumentando, já que não recebia notícias do amigo.
- É sempre assim - disse Verônica, quando já estavam dentro do bar - Dessa vez ele nem se preocupou em inventar uma desculpa.
O trio sentara em uma das mesas com banco único, aonde cabiam pelo menos umas seis pessoas. Caio sentiu-se encurralado, com cada uma das garotas sentada em um lado da mesa e ele no meio. Olhou para seu celular, como que exigindo que ele lhe dissesse o que acontecera com Shade, e guardou-o em seguida.
- E se aconteceu alguma coisa? - ele perguntou a Verônica.
- Então foi merecido - ela chamou o garçom para pedir as bebidas e uma bandeja com tira gostos - Já é o que? - ela estava irritada - 15ª vez?
- Por aí…
- Quem é esse Shade? - quis saber Monique.
Verônica a olhou, como que espantada de encontrá-la ali.
- O contador - Caio explicou - Lembra dele? Não foi você que deu as notas?
Ela fez que sim com a cabeça. Eles observaram, curiosos, enquanto Monique abria sua pasta e retirava seu caderno de desenho. Ela o folheou, encontrou a página que queria e virou pra que eles vissem. Ver aquele desenho fez Caio pensar imediatamente no amigo. Verônica deu uma gargalhada maldosa e provou um pouco de sua bebida que acabara de chegar.
- Esse mesmo - ela declarou - A cara de paspalho está igual!
- Incrível - disse Caio.
Ele examinou o desenho mais profundamente, percebendo alguns detalhes. Era como uma caricatura, com os traços mais marcantes do amigo exponenciados, mas mostrados através das cores. Ele via o olhar perdido e a expressão cansada, além das olheiras e a barba por fazer. Fora isso, o que as cores passavam… Todo o entorno de Shade tinha cores tristes e chapadas, numa melancolia sem igual, mas os olhos dele de alguma forma pareciam imensamente vivos, como se admirassem o mundo.
- Incrível…
Caio observou Monique como se a visse pela primeira vez. O rosto de pele clara impossível de se ler se voltou para ele. Os olhos entre o azul e o cinza o piscaram e desviaram o olhar logo em seguida.
- Você desenha tudo que vê? - Verônica despertou Caio de seu contemplamento - Tem algum desenho meu?
- Meu pai me ensinou a guardar as pessoas assim… - Monique respondeu, enquanto folheava seu caderno até a página correspondente a Verônica.
- Seu pai deve ser incrível também - Caio sorriu ao examinar o desenho e as cores de Verônica.
Uma bonita mistura de cores quentes e uma Verônica com uma expressão ao mesmo tempo rebelde e simpática. As cores do desenho tinham algo como um conflito de sentimentos. Caio tentava decidir quais eram, quando Verônica bufou, irritada.
- Bonito - ela cravou um palito num cubículo de queijo - Mas meus peitos não são tão pequenos assim.
Caio olhou involuntariamente para o peito de Verônica e se desculpou ao ser socado pela mesma.
- E quanto a mim? - sorriu Caio a Monique, massageando o braço.
- Não está pronto - ela recolheu o caderno.
- Aaah - fez ele, tristonho.
Eles beberam e petiscaram, conversando sobre trivialidades e sobre os clientes, enumerando dos engraçados aos irritantes. De vez em quando Caio olhava o celular, chegando até a enviar uma outra mensagem mau humorada ao amigo, por causa do álcool. Já estavam na quinta rodada e Verônica continuava a escolher bebidas para Monique. Ambas estavam coradas, mas enquanto Monique continuava parecendo tão sóbria quanto quando entraram, Verônica estava com a fala enrolada, rindo bastante e espancando Caio com cada vez mais carinho. Caio ria e sentia as bochechas quentes, sua mente pensou na sorte que tinha por conhecer aquela pessoa ao seu lado.
- Você mora sozinha, Monique? - Verônica quis saber, depois de mais rodadas do que eles conseguiram contar - Tem namorado?
Caio encarava uma triste e solitária azeitona com caroço na tábua dos tira gostos, tentando se lembrar se dera uma ou duas voltas na chave ao fechar a loja. Se viu imerso na busca pela resposta da dúvida absoluta de se realmente não havia forma de dar uma terceira volta nas fechaduras comuns.
- Eu divido o aluguel com um amigo - Monique respondeu com uma voz um pouco rouca.
- Ah, entendo - Verônica deu um sorriso malicioso - E como ele é? Bonito? Solteiro?
- Ele é algum tipo de hacker… - Monique olhou para a bolsa e visivelmente não teve vontade de tirar seu caderno novamente - É bonito. É carrancudo... Acho que tem namorado.
- Ah - Verônica suspirou.
- Atirando pra todo lado? - Caio despertou de seu devaneio, escorando-se pra trás.
Verônica o olhou, o queixo escorado em uma das mãos, sem mais ânimo para agressões. Sorriu para Monique, decidida da forma mais fácil de se vingar.
- Olha quem falando. O riquinho que podia estar num iate rodeado de vagabundas.
- Poder não é fazer - defendeu-se Caio, ele debruçou na mesa e roçou o dedo na face de Verônica, da forma mais sedutora que conseguiu falando bem próximo a ela - E você sabe que eu só pertenço a você.
Ele esperava levar uma bordoada poderosa por aquilo, mas o rosto de Verônica ficou da cor do cabelo e ela arregalou os olhos, atônita. Caio se afastou, tão vermelho quanto, sentindo quase como se houvesse fonfonado o seio da amiga. Monique piorou a situação, ao olhá-lo de um jeito esquisito que o álcool não o ajudou a decifrar.
- D-desculpe, Vê…
- Idiota - ela escondeu o rosto nas mãos, fazendo que não com a cabeça - Uuuugh! - fez ela, furiosa.
Estapeou as próprias bochechas e sorriu.
- Vou pra casa. Já deu pra mim.
Verônica levantou-se pesadamente e caminhou até o balcão, onde pediu um taxi e apontou Caio para o barman. Em seguida ela retornou até a mesa, curvou-se para Caio e lhe dando um beijo na maçã do rosto.
- Nos seus sonhos - sussurrou para ele, o empurrando para se levantar - Idiota.
Ela subiu as escadas do bar e saiu. Caio olhava o nada com as mãos caídas sobre as pernas. Ainda sentia o beijo em sua face, como se a amiga tivesse sugado toda sua animação por ali.
- Ela também é estranha - Monique falou algum tempo depois.
Caio olhou assustado para a novata. Havia esquecido dela ali.
- Nem me fale - ele apertou os olhos - E ela deixou a conta pra mim... De novo - riu - Precisa de um taxi?
- Eu moro aqui perto.
- Certo. Eu te acompanho.
Fora do bar, eles foram recebidos por uma noite gelada e uma chuva fraca. Monique protegeu sua bolsa o melhor que pode e colocou o capuz, Caio pôs as mãos no bolso e seguiu a seu lado.
- Você é rico? - Monique quis saber.
- Não - ele respondeu depois de um tempo - Meu pai é.
- Você não se dá bem com ele? - ela realmente parecia surpresa com a expressão de desagrado que Caio fizera ao comentar aquilo.
- Mesmo me esforçando, eu não consigo me dar bem com todo mundo - ele riu - Eu quis construir alguma coisa sozinho e ele não gostou nada disso.
- Mas ele é seu pai… - ela insistiu, sem entender.
- Seu pai deve ser mesmo um cara legal.
- Hm - ela concordou com a cabeça.
- Ele era pintor?
- Hm… - ela pensou - Fotógrafo.
- Fotógrafo? - ele levantou o sobrolho para ela - Achei que ele tinha te ensinado a pintar.
- Ele diz que as pessoas são mais do que a simples imagem delas. Que o âmago não se alcança com uma simples cópia. As cores são parte disso. A harmonia...
Monique ficou quieta, como quando alguém tentava espiar um trabalho seu. Ele deu de ombros e olhou a rua. Sua visão já não estava tão enevoada e por isso pode ver um homem escorado a luz de um poste mais a frente. Ele mantinha as mãos dentro dos bolsos de um casaco de gola alta e observava ambos se aproximarem. O homem encarou Monique, lançando um olhar cobiçoso à bolsa que ela carregava. Em seguida, Caio recebeu um olhar avaliativo de cima a baixo. Sentia o corpo um pouco amortecido pelo álcool, mas se o homem tentasse alguma coisa, não hesitaria em lutar. O homem pareceu notar Caio instintivamente andar um pouco a frente de Monique e lhe deu um sorriso de desdém. Quando estavam a poucos passos de distância, o bolso do peito do homem vibrou e ele puxou seu celular. O homem olhou seu aparelho, deu um suspiro e atendeu, passando ao lado de Caio e Monique e andando na direção oposta à deles. Caio suspirou aliviado depois que o homem se afastou.
- Achei que ele fosse roubar sua bolsa - comentou ele para Monique.
- Hum - ela concordou e ele notou que ela segurava a alça no peito com as duas mãos - Já vi ele antes.
- Hã? - Caio olhou para trás, para garantir que o homem já estava longe, sorriu para ela - Ele está sempre aqui ou é algum ex-namorado maluco?
- Não - ela negou com a cabeça, pensando - Não lembro quando foi - ela ajeitou o cabelo úmido da chuva fraca, franzindo o cenho levemente para Caio.
- Posso te acompanhar na Segunda de noite também - disse ele, dando um sorriso confiante e fazendo uma pose de herói - Caso ele apareça de novo… Tudo pra proteger minhas queridas funcionárias!
- Hum - ela fez depois de olhar para ele por um instante.
Ele a acompanhou no restante do caminho até o prédio de Monique e foi embora para seu apartamento, duas quadras de distância. Ao entrar em casa, foi recebido por Suno, seu velho labrador preto grisalho. Viu que Shade havia respondido sua mensagem com algo como um enigma:
“Não me sinto sozinho, afinal o que é ‘estar sozinho’?”
Caio se pegou pensando naquilo durante mais tempo do que deveria. Na verdade sua curva de pensamentos o levou para lugares sem qualquer relação com a busca da resposta a pergunta depressiva de Shade. Se ele não se considerava sozinho, quem era Caio para contestar? Mas ele era seu amigo, não podia simplesmente desistir... Podia? Caio desistira de tanto em sua vida. Mas tinha dito a si mesmo que não faria aquilo de novo nunca mais. Não para o que ele lutara tanto para ter. Ele bocejou e dormiu.
Na manhã seguinte ele estava batendo na porta de Shade. Viu um olho desconfiado espiar pela fresta da porta.
- Desculpe... - se adiantou o dono do olho.
- Eu podia te culpar por ter arruinado a nossa noite, mas a verdade é que eu consegui estragar tudo por mim mesmo - Caio esperou, mas como Shade o observava como que esperando que o amigo desaparecesse, continuou - Bom dia! Feliz aniversário! Posso entrar?
- Oh, obrigado - disse Shade, terminando de abrir a porta e deixando o outro entrar - Bom dia.
Caio perscrutou o pequeno apartamento, pousando o olhar em uma cadeira de madeira em desalinho das outras da mesa. Desviou a atenção, irritado, e se jogou no sofá, escorando o rosto numa mão e fazendo pose de chefão da máfia, acariciando uma almofada como se fosse um mascote. Shade coçava com desânimo a barba por fazer, olhando para Caio.
- Café? - ele foi até sua cozinha e separou algumas xícaras.
- Por favor.
Caio examinou Shade. Ele estava se preparando para sair, com roupas de passeio e tudo, provavelmente o amigo imaginara que Caio o visitaria no dia seguinte e planejava fugir. Fizera a escolha certa de ir o mais cedo possível, antes que Shade escapasse.
- Por quê? - Caio perguntou, quando o amigo lhe alcançou o café.
- Por quê? - Shade escorou-se perto da janela e espiou para fora, bebericando sua própria bebida.
- Por que não foi com a gente? - ele interrompeu Shade com um gesto, que pegava seu celular para alguma desculpa - Não invente nada! Foi ela que não deixou? - Caio meneou a cabeça para a cadeira vazia.
- Eu não tinha dinheiro - Shade voltou a atenção para a rua, levemente irritado.
- Oh - fez Caio - Podia ter me dito…
- E você ia pagar pra mim - Shade o olhou com irritação, mas Caio sorriu.
- Qual o problema? Eu tive que pagar para Verônica.
- Ia me fazer segurar vela? - Shade sorriu com maldade.
- Quem dera - Caio deu de ombros - Nós levamos Monique, a nova funcionária.
- A manequim? Nossa, que diferença.
Caio viu seu amigo rir e sorriu.
- Que maldade! Mas sim, é ela mesma…
- Você disse que estragou a noite. O que você fez, exatamente? Vou ter que negociar uma reclamação de abuso sexual?
- Tsh - fez Caio, ofendido - Quando foi que eu cheguei a esse ponto? Sou um perfeito cavalheiro.
Shade riu.
- Aonde? No mundo dos animes? - ele suspirou, ante a inspiração de Caio para defender a cultura nipônica - Eu sei, eu sei. Mas hoje em dia, palavras já são ofensa suficiente.
- Eu não quero falar sobre isso... Já me sinto bastante mal... Onde você planejava ir?
- Ao shopping. Talvez no cinema.
- Vou com você. Te pago uma paçoca de aniversário.
- Ah - riu Shade - Perfeito.
Passaram o dia fazendo nada de útil, conversaram, riram, se divertiram. Algumas horas depois, Shade olhava a paçoquinha em sua mão, sorrindo. Ambos sentados em uma mureta na frente do Shopping, olhando o parque movimentado de famílias com crianças e animais. Eles observaram as pessoas.
- Ela fez mesmo isso? - perguntou Shade.
- Sim - Caio havia contado sobre a noite no bar, de como Verônica reagira a sua brincadeira - Acha que fui longe demais?
- Você é um idiota - ele frisou.
- E acha que eu não sei? - ele suspirou pesadamente - Eu não tenho tantos amigos a ponto de fazê-los me odiar.
- Não acho que… - Shade negou com a cabeça - Deixa pra lá. Eu não vou me meter. Só pare de se preocupar com as coisas erradas.
- Como assim?! - murchou Caio - Chega dessas suas indiretas! Aliás, que mensagem foi aquela? Estar sozinho é quando se está sozinho!
- Já falamos sobre isso... Ah... Tanto faz, eu mandei a mensagem sem pensar muito. Eu não me sinto sozinho e só queria que vocês me deixassem em paz naquele dia em especial.
- Aniversários são importantes!
- Por quê? É uma data aleatória que não tem nenhum significado útil.
- É uma data aleatória que te dá um pretexto pra se divertir com os amigos ao menos um dia no ano!
- Não acho aniversários divertidos… Principalmente depois que… Ah. Olha, eu prometo que vou no seu, que tal?
Ele se levantou, mostrou a paçoquinha como se fosse algo de grande significado e a guardou no bolso do casaco. Eles se despediram e Shade rumou para sua casa, deixando Caio a observar o fluxo de transeuntes. Ele cansou daquilo e caminhou parque adentro, encontrando uma árvore um pouco isolada que costumava visitar de vez em quando. Estava ensolarado, com uma brisa agradável, apesar das nuvens. Ele deitou-se na grama fofa com as mãos na nuca, os pés virados para o tronco e o rosto banhado pela luz que passava por entre as folhas. Observou o vento criar padrões na copa da árvore mesclado ao céu bastante azul com lindas nuvens brancas. Não pode deixar de sorrir, ante a tranquilidade que aquilo passava. Caio fechou os olhos por algum tempo, se concentrando em manter a mente vazia e aproveitar aquela experiência ao máximo. Percebeu um barulho como um “roc roc” que se repetia de tempos em tempos e abriu os olhos, tendo um sobressalto ao entender sua origem.
- Nnh...! - ele mordeu a língua pelo susto - Há quanto tempo está aí?!
Monique apontava um lápis de cor marrom com serenidade, sentada na base da mesma árvore à direita dele, bastante perto. Estava com seu caderno de desenho apoiado no colo e o restante dos lápis em cima da bolsa preta ao seu lado. Ela olhou para Caio e voltou a atenção ao desenho.
- Eu já estava aqui quando você chegou - ela respondeu.
Ele riu. Observou a garota de cabelos brancos com mechas verdes se perguntando como diabos alguém como ela podia ser tão difícil de se notar. Ela continuava seu trabalho, ignorando-o. Caio entendeu que isso se dava pela certeza dela de que ele não estava enxergando o desenho daquele ângulo.
- Seria clichê se no final eu descobrisse que você não é real - ele comentou, meio que para si mesmo - Descobrir que eu também estou maluco.
Monique lhe deu uma olhada de cenho levemente franzido, voltando a seu desenho em seguida.
- Do que está falando? - ela questionou.
- Deixa pra lá… - ele olhou para o céu e em seguida para o caderno de capa dura preta - Por que não gosta que vejam o que não está pronto? - a garota continuou desenhando em silêncio - Tudo bem, não precisa responder.
- Pode influenciar no “impacto inicial”… - ela respondeu, depois de um tempo.
- Impacto inicial? - ele riu - Deixar alguém curioso faz parte do choque de ver pela primeira vez?
- Hm - ela fez, dando uma olhada pensativa a Caio - Não é um âmago... - disse ela avaliando seu desenho - Você pode olhar.
- Isso! - comemorou ao levantar e sentar ao lado de Monique para espiar o desenho.
Ela continuou pintando uma mecha de cabelo de marrom enquanto Caio absorvia o que estava vendo. Ninguém menos do que ele mesmo, deitado na grama e visto da perspectiva de Monique. Estava deitado com as mãos na nuca, mas sua cabeça estava dividida em duas, como se vibrasse. Com isso, possuía duas faces. A da direita mostrava-se com um leve sorriso e olhava para cima como se admirasse algo muito belo. A da esquerda estava de olhos fechados e séria, como se refletindo sobre coisas importantes. O desenho ainda não estava pronto, como ela dissera, logo, não haviam as combinações incríveis de cores como os outros.
- Nossa… - ele sorriu para ela - Isso significa que eu tenho dupla personalidade?
Ela negou com a cabeça.
- Não sei - ela explicou - Você não é duas pessoas, mas é mais do que uma.
- Ah - ele fez uma careta, coçando a cabeça e olhando para o parque - Vocês dois com essas charadas - ele pensou um momento - Ontem você disse que meu desenho não estava pronto, significa que tem outro?
- Hum - ela concordou - Mas o outro está errado.
- Errado?
- Você era difícil de captar - ela completou - Você está sempre se movendo, tem muitas expressões e as vezes faz coisas contraditórias…
- Hã? Eu não entendo… - Caio entreabriu os olhos: meio que tentando compreender o que Monique dissera, meio que tentando decidir se o pássaro na árvore mais adiante era uma pomba ou um gavião.
- É difícil dizer quando você diz o que pensa e quando você está brincando - Monique usava cores na grama que não eram apenas tons de verde - O desenho que eu tinha ontem era falso. Como quando você tenta forçar uma das duas faces.
- Então eu tenho mesmo dupla personalidade - ele riu, desanimado.
- Não - ela olhou para ele, tirando uma mecha verde da frente do olho e voltando para o desenho em seguida - Há uma harmonia entre as duas... Mas eu não sei expressar...
Algo na voz dela passou um nível de tristeza.
- Quer dizer que eu sou complicado - ele concluiu - Eu gostei disso... Ah... Mas isso é um defeito… Eu deveria tentar melhorar?
- Não precisa mudar o que você é, a não ser que você queira…
Eles ficaram em silêncio, enquanto ela continuava sua pintura.
- Você comentou sobre um “âmago” ontem também - ele lembrou - É a essência de um ser, né? O que você quer dizer com isso? É o estilo do seu pai?
- Hum - ela fez - É o trabalho dele... Eu só aprendi o conceito das cores.
- Que legal. Está treinando pra poder trabalhar com ele?
- Sim... Mas eu não estou pronta…
- Hã? - ele riu - Seu pai não terminou você, é isso?
- Hum - ela concordou - Ele disse que eu tenho que aprender mais. Conhecer as pessoas. Saber estipular valores a cada um…
- Estipular valores… Caramba - ele coçou entre as sobrancelhas - Isso é parece meio frio... Espere. Não quer dizer “saber valorizar as pessoas”?
Monique arregalou um pouco os olhos para Caio, demonstrando leve espanto e assentiu devagar com a cabeça.
- Foi isso mesmo que ele disse - Monique contou - Não sabia que tinha diferença…
- Ah - Caio riu - Acho que o sentido está na importância que você dá a quem te cerca.
- Como assim?
- Hm - ele pensou - Seu pai é importante pra você, não é? - ela fez que sim com convicção - Então esse é o valor dele pra você. Hã… - ele lembrou do que o chefe havia contado sobre Monique - Acho que você tende a não se apegar muito as pessoas, não é?
- Eu tenho desenhado as pessoas por isso... - ela tocou seu caderno com ternura - Meu pai disse pra dar valor às pessoas assim.
- Não sei dizer o que seu pai planejava - Caio passou a mão no rosto - mas me parece que ele quer que você entenda melhor os sentimentos das pessoas. Talvez ele queira até que você experimente alguns - ele riu de sua própria piada, mas Monique fez que sim com a cabeça, parecendo determinada como se Caio houvesse sanado todas suas dúvidas.
Caio suspirou e olhou a hora.
- Tenho que alimentar meu canis familiaris ou ele vai comer meu lindo estofado novo.
- Hum - ela concordou - Obrigada.
- Hã? - comentou ele, se levantando - Pelo quê?
- Por me explicar - ela olhou para o desenho de Caio e voltou a pintá-lo - Você tem valor para mim.
Caio riu, coçando a nuca sem jeito.
- Você é importante pra mim também, Monique.
Caio usou o restante do fim de semana para colocar algumas séries em dia e ler alguns mangás. Também procurou o sobrenome de Monique no Google, buscando alguma coisa a respeito do pai dela. Obviamente não encontrou nada muito interessante, levando em conta que artistas muitas vezes optavam por pseudônimos. Pesquisou sobre cores e acabou perdendo o foco, indo para uma página com uma descrição detalhada das cores usadas no seriado Breaking Bad.
A segunda-feira começou nublada depois de uma noite chuvosa, mas animada, pelo menos para Caio. Ele recebeu Monique com um cumprimento, usando sua nova técnica para conseguir vê-la, e ela novamente pareceu espantada por isso. Verônica chegou logo depois, parecendo mais envergonhada de si mesmo do que demonstrando qualquer indício de nojo para Caio, o que o deixou tremendamente aliviado.
- Eu saí sem pagar… De novo - disse ela, algumas horas depois, já no caixa - Desculpe, Caio. Eu vou rest…
- Nah - fez Caio para ela - Eu mereci. Desculpe por aquilo... Idiota e bêbado são uma péssima combinação…
- Aquilo? - ela franziu o cenho e tocando a bochecha com o dedão, distraída - Ah! Não, não. Eu não... Tudo bem.
Caio observou uma garota ruiva sair saltitante da loja e Monique voltar a seu lugar no caixa da parede. Ela olhou pra Caio e Verônica.
- Aquela mulher pediu pra eu quebrar uma das xícaras que eu estava desempacotando… - disse ela - E depois foi embora.
- Cada uma que aparece - Caio riu - Ah... Você não fez isso, fez?
- Não - Monique ergueu o sobrolho levemente - Por que eu faria isso?
- Sendo você... - murmurou Verônica.
- Ah - Caio riu - Só perguntei por perguntar! Verônica estava me falando o quanto se sentiu mal por ter deixado seu chefinho querido com a conta da noite. Ai! - soco - Eu menti?
- Não - disse a Verônica, irritada - Eu vou te pagar quando receber, idiota.
- E eu não vou aceitar - Caio viu o caderno de Monique aberto no balcão - Oh! Você terminou?
- Sim - Monique mostrou o desenho de Caio.
A sensação que as cores passavam foi diferente das que ele testemunhara nos outros. Foi quase como olhar no espelho, ou uma gravação em tempo real com resolução baixa. Um sentimento de estranheza surgiu quando ele moveu o rosto e não houve resposta no desenho. Ele riu, encantado.
- Me sinto impactado, mesmo não sendo a primeira vista!
Monique deu um sorriso tímido, o primeiro que ele viu naquele rosto tão inexpressivo. Para Caio, foi tão lindo quanto um raio de sol inesperado em um dia nublado e sem graça. Não pôde deixar de sorrir também.
- Oh... Eu perdi alguma coisa? - perguntou Verônica com uma cara de desdém beirando ao nojo - Vocês andaram se divertindo depois que eu fui embora e eu não estou sabendo?
- Eu encontrei ela no parque, Sábado - explicou Caio - Passeamos, tomamos sorvete e demos nosso primeiro beijo! - ele contou, fazendo expressão de apaixonado - Mas aí eu acordei - ele suspirou e riu.
Verônica bufou para os dois e Monique olhou para o desenho.
- Ele estava no parque - ela disse - Cochilando. Então eu pude desenhá-lo - ela mostrou o desenho a Verônica.
- Hum - fez ela - Entendi... Está bom mesmo. Retrata bem o jeito como ele é falso.
Monique franziu o cenho para o desenho.
- Não era pra ser isso…
- Pare de implicar, Vê - Caio deu um olhar de reprovação à garota de cabelos rosas e ela revirou os olhos - Eu me vi no desenho... O talento é... assustador. Ah...
Caio foi na direção de um cliente balançando perigosamente sua mochila perto de uma estante com coisas delicadas e, algumas horas depois, o expediente estava encerrado. Caio liberava os funcionários de atendimento e os guardas, com uma das lâminas das portas entreaberta. Ele apagou a luz da loja e sentiu que estava esquecendo alguma coisa. As reacendeu e vislumbrou um par de olhos a encará-lo lá nos fundos, olhos esses parcialmente cobertos por mechas verdes. Ele foi até Monique, ainda sentada em seu lugar no caixa.
- Hã... Já pode ir embora - ele avisou - Qual o problema?
- Não encontro meu caderno.
Ela mostrou o interior de sua pasta, com nada além de seus inúmeros lápis de cor.
- Ah - ele examinou a volta - Eu ajudo a procurar.
Eles deram voltas na busca pelo objeto, dos lugares mais óbvios aos mais improváveis. Embaixo da mesa, nas estantes, atrás da maquina de doces, nos banheiros, no vestiário, na sala da gerência e dentro do cofre. Caio coçava a cabeça pensativo e Monique vasculhava sua bolsa pela vigésima vez, quando Shade entrou na loja.
- Fazendo hora extra? - ele perguntou a Caio.
- Procurando o caderno da Monique - Caio a indicou com a cabeça.
- Oh - Shade ergueu o sobrolho, notando a garota ali - Eu achei um caderno vindo pra cá.
Shade foi até o balcão e abriu sua maleta. Dela tirou um caderno de capa preta, sujo e inchado pela umidade. Monique estendeu a mão e pegou o objeto, depositando-o em cima da mesa e o abrindo com cuidado. Ao tentar folheá-lo a primeira página rasgou a partir do ponto em que ela segurava. Caio comprimiu os lábios ao ver aquilo e coçou a cabeça, olhando para Shade.
- Eu vi isso atirado na rua - Shade explicou - Aberto e pegando chuva - ele passou a mão na barba, distraído - Era bonito e Moony... Ah... e eu pensei em levar pra casa.
Monique tinha o cenho franzido com mais intensidade do que Caio jamais vira, e isso o deixou preocupado. A garota permaneceu em silêncio, tocando as ondulações e manchas no papel com delicadeza.
- Será que um cliente roubou? - sugeriu Caio para o amigo - Ela estava com o caderno depois de chegar na loja.
- Alguém o pegou - disse Shade, apontando as câmeras de segurança - É fácil descobrir.
- Sim - Caio puxou seu celular para enviar um e-mail - Vou pedir as gravações de hoje pra empresa de vigilância.
- Eu estava pensando em usar papéis toalha - Shade disse para Monique - Acho que dá pra recuperar.
Ela fez que não com a cabeça, fechando a capa do caderno e o guardando na bolsa preta.
- É só um caderno - ela declarou, com desinteresse.
- Hã? - Caio olhou-a abismado enquanto ela pegava suas coisas e se dirigia a saída - Ah, espere! Eu tinha prometido ir com você.
Eles fecharam a loja e se despediram de Shade. Monique voltara a seu estado de serenidade e inexpressão e o caminho para casa foi tenso, pelo menos para Caio. A garota agia normalmente, como se nada tivesse acontecido, e aquilo deixava Caio ainda mais nervoso, desesperado e sem saber o que fazer.
- Vamos descobrir quem foi - Caio garantiu - Temos um mural da vergonha, sabe? Onde colocamos os clientes que não são bem-vindos. Os seguranças mantém esse pessoal longe depois. Podemos até chamar a policia, afinal foi um roubo.
Monique olhou para Caio, afastando uma mecha verde da frente do olho.
- Não tem importância - ela disse depois de um momento - É só um caderno.
- Monique... - ele riu num espasmo - É obvio que é importante pra você.
- É um objeto. Não tem sentimentos. Não tem valor.
- Não tem sentimentos? - ele ergueu o sobrolho para ela e ela o olhou curiosa - Achei que era isso o que você desenhava nele.
- Hum - fez ela, apertando a alça da bolsa na mão - E era isso que você via?
- Eu errei? - ele coçou a nuca.
- Não - ela deu um sorriso quase imperceptível, mas voltou a seriedade - Meu pai diz que eu tenho que entender o que tem valor. Separar coisas de seres.
Caio respirou fundo, observando a rua.
- Você mesma disse que não precisa se mudar o que se é, lembra?
- Hum - ela fez - E você disse que eu não me apego as pessoas. Meu antigo gerente dizia muito isso.
- Ah, sim - ele riu, sem graça - Foi o chefe que me disse isso.
- O que quer dizer? - ela tocou na bolsa - Eu nunca entendi.
- Hum… - ele pensou - Você não demonstra seus sentimentos.
- Meus sentimentos?
Caio a fez parar de andar e a balançou de leve pelos ombros.
- Você é uma pessoa, Monique. Não uma coisa. Sentimentos, como você mesma disse, separam coisas de seres. Coisas não dão importância a nada. É por esse motivo que você pode dar valor ao seu caderno o quanto quiser.
Ele terminou o discurso animadamente, com uma pose épica, um positivo com o dedão e uma piscadela a Monique. Uma lágrima brilhou a luz da rua, escorrendo pelo rosto da garota e o assustando. Monique pareceu igualmente surpresa e limpou-a com a manga.
- Eu não... - ela tentou dizer, olhando para baixo e esfregando os olhos - Não é… O caderno é...
Caio comprimiu os lábios, inquieto. Hesitou, mas em seguida envolveu Monique num abraço cuidadoso.
- Tudo bem em chorar - disse Caio - Não é só um caderno. Ele faz parte do seu âmago.
Monique soluçou e recostou-se mais a Caio, segurando-o de leve pelo blusão. Ele sorriu para ela e ela riu, sorrindo em retribuição, com os olhos úmidos e a maquiagem um pouco borrada. Desta vez seu sorriso não desapareceu e ela continuou olhando para ele de um jeito que ele não soube avaliar.
- Você é importante pra mim, Caio - ela disse baixinho, antes que ele se tocasse do quão perto seus rostos estavam.
- Você também, Monique.
Ela fechou os olhos, se aproximando devagar e ele sentiu o peito pular ao perceber o que ela ia fazer. Os lábios de Monique eram macios e quentes. Caio percebeu isso quando eles tocaram o dedo indicador que ele colocou no caminho. Ela abriu os olhos, confusa. Ele sorriu, sem jeito.
- O-o que está fazendo? - ele perguntou.
- Eu... - ela se afastou - Pensei que você...
- Oh - ele fez - Oh! Não, não. Ah… Eu só queria… - ele estapeou as bochechas, tentando recuperar o foco - Você é importante pra mim, Monique. Só não desse jeito. Eu... Já tenho alguém que... - ele a olhou, suplicante.
Monique afastou a mecha da frente do olho.
- Entendo - ela disse meio que pra ela mesma - Eu entendi - ela sorriu - Pensei que era o que você queria e... Bem, acho que era eu que queria isso - ela deu um passo a frente e Caio lutou para não sair correndo - Obrigada, Caio.
- Pelo q…? - ele se interrompeu quando ela lhe deu um beijo na maçã do rosto.
Caio ficou parado, observando Monique andar os cerca de dez metros restantes até a entrada de seu prédio e subir. Pôs as mãos nos bolsos e foi pra casa. Estava extremamente cansado e com a cabeça cheia.
Suno o recebeu com um abanar de rabo do outro lado da porta de vidro da varanda. Ligou o computador ao ver que a empresa de vigilância enviara o arquivo com as câmeras de segurança da loja, preparou um café enquanto baixava os arquivos e limpou a sujeira do cão. Catou uma lupa e um cachimbo decorativo e se sentou para avaliar as gravações. A animação dessa brincadeira desapareceu quando ele descobriu o culpado. Caio sentou-se em sua poltrona preferida e ficou observando Suno dormir. Em uma mão uma xícara meio cheia de café, na outra o cachimbo que ele mordiscava, pensativo. Depositou os objetos na mesinha de centro e saiu para a varanda. Tomou fôlego e gritou a todo pulmão. Sentou-se na divisória da porta de vidro e recebeu cheiradas do amigo preocupado enquanto ouvia cachorros latirem na vizinhança, janelas se abrindo e muitos murmúrios de “Que foi isso?”. Caio se sentia vazio. Uma sacola de supermercado a mercê do vento de uma tempestade, agarrada a um poste prestes a perder o apoio. Pegou seu celular e telefonou.
- Pelo menos hoje - disse ele para o aparelho - Pelo menos hoje me atenda!
Na manhã seguinte eles estavam na sala da gerência. Caio não dera tempo para o culpado se trocar chamando-o imediatamente, de modo que ela ainda estava sem uniforme. A garota de cabelos rosa sentava numa cadeira no centro da sala de mãos nos joelhos, parecendo muito interessada em olhar em qualquer outra direção que não fosse para o gerente, que estava escorado na parede à direita esfregando os olhos e sem dizer palavra.
- Por que fez aquilo? - Caio perguntou, finalmente.
- Fiz o quê? - ela se fez de desentendida, mas sua voz soou como “culpa”.
- Por que você jogaria o caderno de sua amiga fora?
- Ela não é minha amiga - disse ela, com ódio palatável.
- Então, por que jogaria o caderno de sua colega fora?
- Eu... - ela mordeu o lábio, com raiva - Como…?
- Câmeras de segurança - ele previu a pergunta não feita - Eu sei que foi você, Vê. O que eu quero saber é o porquê.
- Ela merecia - Verônica respondeu - Ela se acha especial. E você instiga! Vocês dois são ridículos! - sorriso com raiva - Vocês dois se merecem mesmo. Dois merdas querendo aparecer. Se acham melhores que todo mundo. Agem como se soubessem tudo de todos.
Verônica olhou para Caio. Esperava ver aquela terrível cara de desaprovação, conhecida pela equipe da Empório como “modo sério” de Caio, mas o que viu a deixou atônita. Caio olhou para ela com profunda tristeza, ombros arqueados e parecendo longe de tão confiante como sempre demonstrava. Ela venceu o choque e encarou o chão. Murmurou alguma coisa que ele não entendeu, cerrando os punhos com força. Pelo rosto vermelho de raiva, lágrimas escorreram.
- … sua culpa - ela continuou murmurando - Seu idiota…
- É, eu sei - Caio falou, recuperando a compostura - Sou um idiota e culpa é minha. Você vive dizendo isso.
Verônica esfregou os olhos.
- Eu peguei o caderno - declarou ela calmamente - e joguei fora. Estava irritada e agi sem pensar.
- Bom - ele coçou a nuca - Não tinha planejado... “instigar” o ego da Monique de forma alguma... Se foi isso que pareceu, vou tentar ser menos…
Verônica fez que não com a cabeça e olhou para Caio com olhos castanhos claros avermelhados pelas esfregadas. Seu rosto não demonstrava a raiva de antes, mas sim um sentimento que deixou Caio um pouco confuso. Ela fungou e endireitou-se na cadeira, sentando em cima das mãos.
- Eu me irritei... com a atenção que você dá a ela…
- Oh - fez ele por impulso - Está dizendo que sentiu ciúmes?
Ela fez uma carranca furiosa e ele temeu ser acertado, mas sua expressão mudou para uma calma levemente irritada.
- Eu sei que é idiotice - disse ela - Eu sei que você é um idiota completo. Um babaca mimado - balançou a cabeça negativamente de novo - Eu odeio como você está sempre alegre. O jeito como você fala com as pessoas. A forma como você trata todas as mulheres. Acho que principalmente isso.
- Caramba…
- Eu quero arrebentar a sua cara sempre que você floreia pra perto de alguém… - ela olhou pra ele de cenho franzido - Eu… não suporto que você trate todas como você me trata!
- Wow! - ele piscou os olhos, quase para garantir que aquilo era real - O quê?
- Tudo o que você faz é ambíguo. Tudo que você diz é piada. Você é a pessoa mais irritante que eu conheço... Eu pensei bastante nisso... e acho que eu gosto de você, Caio.
- Verônica… eu...
- Mas ao mesmo tempo - ela o interrompeu - eu não confio em você. Você age como um ator. Sempre seguindo um script. Sempre sabe exatamente o que dizer e quando. E cada frase é como uma armadilha que você joga pra alguém cair. Fazendo todos de idiotas. Como confiar em alguém assim? Ugh! - ela fez, se largando na cadeira - Monique... fez um bom desenho.
Veronica fechou os olhos como se dormisse ou pensasse, e o silêncio que se alastrou deixou Caio mais e mais inquieto.
- Nossa - disse ele, respirando e tentando arejar os pensamentos - Eu não sei o que dizer... - ele riu, nervoso ante a espiada que Verônica deu a ele - Acho que isso quebra sua teoria do script.
- Hum - ela sorriu e se levantou, estapeando as bochechas - Ah! Me sinto até mais leve... Ah, tenho que pedir desculpas pra Monique… Ela é minha amiga, sim. Vou aceitar o que ela quiser de punição.
- Sim - ele coçou a nuca - Sobre o que você disse…
Verônica parou, segurando a maçaneta da porta.
- Eu... - disse ele - eu também gosto de você, Vê. Desde a primeira vez que conversamos… - ela ficou em silêncio, sem olhar pra ele - Meio que por vergonha de admitir... Eu tenho tratado todas as mulheres desse jeito... Desculpe. Ah…
Ele se interrompeu. Aquilo era o que ele sempre quis dizer, mas sentia a falta de peso nas palavras. O que ela havia dito era verdade. Em sua mente ele ensaiava infinitos momentos, de modo que quase nunca era pego sem resposta. Mas dessa vez, nada do que tinha planejado vinha a tona e ele se viu deixando o silêncio permear entre aquelas duas pessoas. Não conseguia pensar em um meio de mostrar o quanto amava aquela garota de cabelos rosa. Nada que não fosse soar falso ou terrivelmente vazio.
- Hum - fez Verônica, enfim, ainda sem olhá-lo - Eu queria acreditar nisso, Caio - ela abriu a porta e saiu - Mas eu desaprendi a confiar em você - disse antes de fechar.
Caio ficou dentro da sala da gerência por um tempo. Cerca de meia hora depois ele percebeu que estava contando o traçado do carpete pela enésima vez.
- Você é importante pra mim, Verônica - disse ele para ninguém.

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