Total de visualizações de página

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Diário de bordo - Lucke - Dia 1

     Certo. Não sei o que estou fazendo aqui. Fazem 9 anos desde o incidente... Estou procurando respostas? Será que ainda não superei isso? Meu pai largou isso de mão faz muito tempo. Mas acho que nunca esqueceria de fato. Talvez tenha resolvido aceitar. Eu não sei. Ele me deu o barco. Nada muito espalhafatoso, um pesqueiro modesto, mas bem cuidado. Desde aquela noite... Meu pai não comenta muito sobre aquilo. Eu estava lá, vira tudo com os próprios olhos. Por que haveria de discutir? Ele nunca acreditara em monstros marinhos, sempre dizia que havia coisas demais pra se preocupar somente no tangível, será que aquela noite o mudara?
     Nove anos antes, estavamos velejando de volta à capital. Tivemos uma boa sorte e nosso porão estava cheio de pescado. Tio Pierre e meu pai na cabine e minha tia e mãe no dormitório do porão. Lembro de os dois estarem discutindo sobre o trajeto e a tempestade que tentavam delinear.
     - Se aquele farol for o da Ilha do Vale você é um péssimo navegador - dissera seu pai ao irmão.
     Tio Pierre fez algum comentário zombeteiro como de praxe. Lembro da idéia que tive ao olhar pela escotilha. Estava muito escuro lá fora, se caissem na água teriam como saber onde era alto e baixo? Resolvi perguntar a minha mãe, ela por algum motivo gostava que eu lhe levantasse esse tipo de questões. Não sei se cheguei a perguntar, não lembro se recebi uma resposta. Lembro quando levantei para descer ao dormitório e de tio Pierre dizer-me:
     - Cuidado, Lucke. Com esse tempo não temos como pescar um peixe do seu tamanho.
     Lá embaixo as duas mulheres conversavam sobre qualquer coisa, quando o barco deu um solavanco. Detrás da porta para o porão de carga ouviu-se o barulho de algo pesado se movendo. A porta se escancarou e o chão foi coberto com centenas de peixes. Tia Sara disse um palavrão e correu ao pequeno banheiro para tentar limpar seus sapatos novos. Minha mãe estava descalça e de macacão e se limitou a rir e pedir que eu chamasse meu tio para ajudar a limpar aquilo. Obedeci, mas quando chegamos ao porão ela não estava ali. Minha tia continuava no banheiro, murmurando xingamentos sobre sapatos e o chão estava se enxendo preguiçosamente de água. Um fino rastro de sangue seguia pela porta, entrando no porão. Lá dentro, a comporta por onde a carga era descida do convés estava aberta e pingos grossos de chuva batiam nos peixes expalhados no chão, fazendo alguns se debaterem. Tio Pierre subiu a escada de metal em direção ao convés, mandando que eu fechasse a comporta quando ele passasse. Com isso feito, corri ao convés pela escada do dormitório.
     Lá fora, os refletores mal garantiam um pouco de luz a iluminar as duas pessoas perto da amurada do navio. Minha mãe estava sentada com as pernas balançando por sobre o mar e tio Pierre levantava as mãos como quem se aproxima de um cão sem querer assustá-lo. Aproximei-me e vi, minha mãe sorria. Um sorriso cheio de dentes, seus olhos brilhavam com a luz do navio. Pierre chamou-a, com o medo se fazendo sentir na voz. Ela pareceu notá-los ali.
     - Conseguem ouvir? - perguntou, maravilhada - Lucke! Ouça-a cantar!
     Meu pai guiava o barco alheio àquilo, cortava as ondas normalmente. Uma dessas ondas causou um violento solavanco. E no instante seguinte ela mergulhou. Não sei se ela faria aquilo de um jeito ou outro. Só sei que meu pai se culpou por isso. Passamos o restante da noite dando voltas, procurando por minha mãe, e um bom pedaço do dia. Eles largaram minha tia e eu no porto e voltaram imediatamente. Quando retornaram novamente a carga já estava quase estragada pelo mal condicionamento. Meu pai passou os dois anos seguintes procurando, chegando a beira da falência pelos recursos investidos sem recursos. Deixou o barco âncorado e a mim cuidando pra que não se desmanchasse em abandono. Há sete anos não pisa mais no Máscara Azul. Há dois dias ele o deu para mim...
     Comecei esse Diário de bordo e nada falei sobre o dia de hoje. Desde ontém tenho levado pessoas da universidade até as Ilhas do Vale, também tenho trabalhado de guia local. Há mais ou menos um ano me mudei para um pequeno casebre na praia do Galvo e tenho vivido como um habitante. Conheci muito da natureza rica daquelas ilhas. A tribo nativa não é muito receptiva e ficaram meio nervosos quando viram meu barco se aproximar. Consideravam-se os donos daquela terra, o que eu não chego a discordar. O que diriam se soubessem dos homens da capital que venderam suas ilhas para a universidade? Expliquei ao chefe que não me aproximaria sem a autorização dele de nenhuma de suas ilhas sagradas, o que pareceu amenizar sua carranca habitual. Eu dei minha palavra... Mas guiando esses esnobes estudantes por aí... Quanto tempo demorariam a espiar por detrás de seus narizes empinados notando as ilhas enevoadas? Não levaria ninguém para lá... Talvez pelo preço certo...
     Vim a essas ilhas não com esperança de achar minha mãe. Não, nove anos é muito tempo. Mas o ar desse lugar me faz sentir mais próximo dela. Como uma maneira de não esquecê-la, permaneço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comenta aí!!