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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Heterocromia - Anka


Anka Anu Allen. Este é meu nome. Nasci em Brisbane, cresci em Brisbane, apaixonei-me em Brisbane. Por muito tempo quando criança quis ser taxista. Eu achava o máximo me pagarem para ficar dirigindo pela bela Brisbane, conhecendo novos lugares, pois até os mesmos lugares são sempre novos por lá, conhecendo novas pessoas, novos sotaques, novas histórias. Muito me imaginei ouvindo histórias de viagens, de safáris, de "como me tornei um paraquedista"... Sempre fui boa em inventar histórias, e isso alimentou meu sonho de ser taxista por bastante tempo. Quando eu estava no ensino médio, convenci-me que ser taxista não era uma coisa muito sensata de se desejar, pois não haviam obstáculos suficientes, era só ter uma carteira de motorista e carro legalizado. Escolhi então ser professora. Por algum tempo pensei e repensei em ser professora de quê? Dar aula para os pequenos? Para os adolescentes? De matemática, português, literatura... Ah, literatura! Podia sentir romances brotando de meus dedos! Mas no dia da inscrição para o vestibular, mudei de ideia. Inscrevi-me para Licenciatura em Biologia. Não sei por que fiz isso. Mas também não me arrependi por um só dia. Na biologia encontrei todas as histórias de aventura que eu precisa para me sentir viva. Quando me formei, ser professora apenas não me bastava. Me formei também em bacharelado. E continuei no mestrado em Oceanografia Biológica, que já concluí, e doutorado em Sistemas Costeiros e Oceânicos, que estou pesquisando ainda. Para mim, chegar aqui, nas intocadas e místicas costas de Milne Bay é um privilégio novo e não projetado como real.

Lucke, nosso taxista dos mares, logo de início levou-nos para a Ilha de Ito. Gostei do nome da ilha. Gostei mais da ilha. O lado nordeste tinha uma encosta de floresta densa, sem praia, com pedras e profundidade. O lado oeste, havia um rio de cor azul escuro que desembocava no oceano transparente. O encontro das águas gerava um habitat perfeito para o desconhecido. Ali convenci Magda a armarmos acampamento. Nossa equipe era composta por quatro pessoas: Magda que era a professora chefe, e eu, John e Yani, pesquisadores.

À noite, fizemos um jantar onde Lucke nos forneceu alguns peixes. Quando estávamos em volta da fogueira, o taxista dos mares me chamou a atenção. Sua forma de olhar aficionado para o brilho do fogo me fez imaginar quais histórias ele guardava sob aquele chapéu e aquela cara de mau. Sobre seus traços, não posso dizer que era o mais bonitos dos homens, mas digamos que seus traços lembram o Ben Affleck, um Ben Affleck com barba errada, surrado do sol e da vida, e com uma expressão confusa de "onde estão minhas chaves?" misturada com "esses estudantes riquinhos não sabem onde estão se metendo". Não sei se taxista dos mares é o melhor apelido que posso dar-lhe. Talvez pirata de Milne Bay fizesse mais jus aos seus mistérios.

- Por que você está aqui, Lucke?

Pensei por um segundo em repetir a pergunta um pouco mais alto. Antes de eu criar coragem de fazer isso, Lucke vira o rosto em minha direção, sem mudar a expressão do rosto. Pude ver tristeza em seus olhos ainda com o reflexo das chamas. Encarou-me por alguns segundos, e volveu a admirar a fogueira, como antes. Percebi que conversar não era um ponto forte do nosso amigo. Eu poderia tramar um milhão de possibilidades por ele ter me visualizado e ignorado, não que não tenha feito isso, porém forcei meus pensamentos a outras coisas.

Conversei um pouco mais com Yani até os peixes ficarem prontos. Yani cursou Oceanologia na Universidade de Adelaide, sua cidade natal. Éramos bem parecidos eu e ele, não só pelo amor ao Pacífico, mas também por nossos traços. Sua pele morena escura, seus olhos cor de mel, estatura média, cabelos castanhos médios cortado curto. Diferíamos principalmente pela cor dos olhos. Eu tenho heterocromia setorial, isso faz meu olho esquerdo ser verde-azulado, e meu olho direito ter uma "pincelada" cor de mel.

Depois de comermos, aos poucos as pessoas foram se direcionando para suas barracas. Ainda estávamos sentados quando Lucke resolve falar comigo.

- Eu não sei a razão de eu ainda estar aqui.

Nesta hora percebi que talvez ele não fosse tão mal como aparentava ser. Só está confuso consigo ou tem déficit de atenção. Se bem que é mais provável ele estar apenas confuso e deslocado. Meus pensamentos são cortados pela voz grave de Lucke.

- Como você conseguiu essa cicatriz no pé?

Surpreendida com essa pergunta superficial que foge dos conflitos, percebi que minha postura esta horrível. Melhorei a coluna, juntei os joelhos, coloquei ambas as mãos sobre as pernas, olhei para Lucke. Dessa vez tive certeza do que ele pensou: "Que garota estranha!".

- Essa é minha cicatriz preferida. Fiz ela com 6 anos e 3 meses. Meu pai me deu um canguru chamado Elvis de presente de aniversário. Viramos muito amigos pois o criava solto. Na verdade eu nem o criava, ele ia me visitar quando queria, leia todos os dias, e brincávamos juntos. Depois de três meses de amor entre nós, estávamos correndo como sempre, e tropecei numa pedra. A pedra fez um machucado bem feio sobre meu pé, que até hoje me resta boas lembranças do Elvis, das mandingas da minha mãe e da nossa mudança para o centro de Brisbane.

- Bastante coisa para um machucado, você não acha?

- Realmente foram mudanças que já estavam para acontecer, pois eu logo entraria para o colégio... E o machucado rendeu também uma quebradura desse pé.

- E por que sua mãe fez mandengas em você?

- Mandingas! - risos - Minha mãe é de origem aborígene, as crenças do povo dela são muito fortes nela. Então, enquanto meu pai não chegava para me levar ao hospital, fui submetida a procedimentos que ainda não compreendo. Foram folhas de árvores, escamas de peelii peelii, seiva de plantas. No fim, sobrevivi a minhã mãe, e meu pai me levou para o hospital.

- Você fala com um certo desprezo dos conhecimentos dos nativos. Por que veio para cá?

- Para entendê-los.

Luke olhou nos meus olhos nesse momento. Não sei se estava percebendo minha heterocromia ou se estava querendo me intimidar. Conseguiu apenas um boa noite com seu olhar 43.

- Boa noite, Anka. 

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