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sexta-feira, 10 de junho de 2016

Companhia



Era um apartamento bem pequeno, em uma espécie de condomínio do subúrbio. Shade vivia ali havia cerca de dois anos e a cada dia que passava, tinha mais dificuldade de lembrar como era sua vida antes de se acomodar àquela rotina. Sua esposa o deixara havia bem mais tempo e, depois de vários brigas jurídicas, havia ganhado o antigo apartamento que ambos se esforçaram tanto para quitar. Ela então passara a viver com o novo namorado e Shade se mudara para bem longe. Shade entrou em seu apartamento e cumprimentou Moony. A garota de cerca de vinte anos o saudou com sua energia infinita e um sorriso enorme.
- Fiz carinho num gato hoje! - ela disparou - Tinha uma mancha no olho como um mini-panda!
- Legal - comentou Shade, tirando as botas embarradas e as depositando perto da porta, ao lado de onde escorara o guarda-chuva.
- Ele miou e me seguiu por um tempo, mas eu não pude trazer por que você é um bundão - Moony continuou, fazendo um biquinho emburrado para Shade que lavava o rosto na pia do banheiro.
- Eu não pedi pra ser assim - ele secou o rosto na manga da camisa e afrouxou a gravata, indo explorar a geladeira, na esperança que magicamente algo de novo houvesse aparecido ali.
- Não devia beber isso agora - ela desaprovou com a cabeça - Deviamos fazer algo diferente!
Shade havia pego uma latinha de cerveja barata e se escorado no balcão, de frente para Moony. A garota lhe dava um sorriso estimulante sentada em uma cadeira com as pernas para cima e as mãos nos joelhos, como um índio.
- Como o quê? - ele tomou um gole.
- Vamos sair?! - ela sugeriu - É sexta-feira! Você não trabalha amanhã.
- Sair? - Shade caminhou até a pequena janela e espiou o clima triste, passando a mão na barba por fazer - Pode chover a qualquer momento e está bem frio…
- E daí? Só vamos fazer alguma coisa!
Shade deu de ombros, bebeu o resto da bebida e trocou de roupa. Ficou um tempo sentado na cama, sentindo as mãos geladas nos olhos e pensando em nada específico. Por fim, pegou seu casaco, vestiu as botas e saiu. A rua estava fria e desolada, sem ninguém a vista e os sons da metrópole abafados pela distância do centro. Moony quase saltitava ao seu lado, com bochechas rosadas aparecendo do capuz felpudo.
- Onde vamos? - ele quis saber.
- Me surpreenda!
Eles caminharam em silêncio, observando as janelas e portas fechadas. Olhando seus reflexos nos vidros dos carros cada vez que atravessavam a luz de um poste. Ruído de gente surgiu gradativamente ao se aproximarem de uma esquina. Quando pararam nela, avistaram rua adentro uma fila de pessoas esperando para entrar no bar Noite de Lua. Era um bar movimentado e com palco, onde toda semana uma banda de garagem se apresentava. Eles passaram pela fila, espiando a escada que descia para a entrada do bar.
- Nada de bebidas! - ela avisou.
- Não tenho dinheiro pra isso, de qualquer forma - disse ele.
Continuaram a caminhada e chegaram a um parque em cujo centro havia uma pracinha com brinquedos. Moony correu até um dos balanços e sentou, indicando o do lado para Shade. Ele se aproximou e tentou sentar, mas o balanço era muito pequeno e machucou os ossos das ancas. Shade suspirou e se levantou, tirando um maço de cigarros do bolso e se escorando na base do brinquedo.
- Eu assisto - ele disse a Moony, que se movia levemente pra frente e pra trás, alegremente.
Mas Shade não encontrou seu isqueiro, fechando os olhos com mais um suspiro, com o cigarro dependurado entre os lábis pateticamente.
- Me embale! - disse ela.
- Não está meio velha pra isso? - ela estreitou os olhos pra ele, em mais um biquinho de fúria - Ok, ok.
Ele a empurrou, se afastando para trás a medida que ela ganhava velocidade. Ela gargalhava dizendo para ele usar mais força. Até que um murinho surgiu atrás dele e Shade tropeçou e caiu para trás. Ele viu cores quando sua cabeça bateu numa pedra e o rangido do balanço invadiu sua mente, como que vindo de toda parte. Ele apertou os olhos e ficou ali, caído de pernas pra cima até a dor amenizar. Suspirou e encarou o céu escuro. Moony agachara ao seu lado e o olhava, preocupada.
- Você morreu? - ela perguntou num sussurro.
- Morri - ele respondeu, dando um riso dolorido e se levantando pesadamente - Mas por sorte, sobrevivi.
Ele bateu a sujeira da roupa e eles saíram da praça para continuar andando pelas ruas desérticas. Shade tentou sentir o frio e o silêncio, mas Moony começou a cantarolar baixinho o que parecia ser a música de algum comercial de tintas. Fizeram uma pausa para dar um pouco de atenção a um cachorro velho e muito gordo, amigo deles de longa data.
- Ele não tinha essa marca antes - disse Shade, apontando para um corte acima do olho do animal - Deve ter brigado de novo.
- Oh, nosso garotão é um lutador! - Moony fazia uma voz idiota de adulto falando com bebês ou animais fofinhos - Aposto que estava salvando alguma cadelinha indefesa.
Quando o cachorro voltou para o beco de onde saíra, eles retomaram a caminhada. Dobraram outra esquina e passaram na frente de um depósito em que descarregavam caixas de um caminhão. Os descarregadores deram olhares desconfiados a eles, mas continuaram a trabalhar.
- O que acha que eles estão descarregando? - Moony perguntou animada, quando já haviam se afastado.
- É o depósito de uma loja online... Canecas? Camisetas?
- Só podem ser contrabandistas de órgãos! - ela abraçou o próprio corpo e se balançou - Atrás de jovens indefesas e pessoas tristes pra roubar seus pedaços!
- Sim, é bastante provável - ele riu - Pessoas tristes?
- Isso! Eles entram na internet e encontram gente desesperada- ela se empolgou - Atraem elas pra um lugar sombrio no meio da noite e… - passou o dedo na garganta - xablau.
- Assustador - Shade teve de rir.
- Oh! - ela olhou para ele espantada - Não me diga que você é um deles?! - Moony pôs as mãos nas bochechas e gritou por socorro para a rua, a voz abafada pelo capuz - Socorro! Ele quer meus rins!
- Talvez seja um emprego mais divertido que o meu.
- Ah, é claro que é - ela saltitou para frente dele e lhe deu um olhar maldoso - Na verdade, eu estou aqui pra te matar!
Ele deu um sorriso cansado e sentiu um pingo gelado na bochecha. Moony olhou pra cima e fechou os olhos, esperando a chuva. Ele a imitou e se concentrou em sentir aquelas pequenas agulhas tocarem suavemente sua pele. Moony suspirou, ao notar que a chuva não ficaria mais forte que aquilo. Shade riu.
- Quer que eu pegue um resfriado, é? - ele passou a mão no próprio rosto - Estou com fome, vamos pra casa.
Fizeram o resto do percurso e chegaram ao local de partida.
De volta em casa, Shade tirou as botas e as depositou ao lado do guarda-chuva, que não havia se molhado havia semanas, apesar de ter o levado ao trabalho várias vezes. Ele preparou um omelete simples com o que encontrou e se sentou no sofá, sem ligar a pequena tv de tubo. Moony havia voltado para sua cadeira e voltara a cantarolar sua musiquinha sobre ofertas de tinta. Shade viu seu celular em cima da mesa piscando um aviso de mensagem. Não havia levado ele para o trabalho justamente por aquela mensagem. Ele sabia o que era e fez questão de terminar sua janta calmamente. Ficou ainda mais um tempo pensando em nada em específico. Pegou a louça e a lavou. Não queria ler e ao mesmo tempo sentiu-se na obrigação.
- Leia - disse Moony, encarando o vácuo na direção contrária ao aparelho.
Shade suspirou e pegou o celular. Haviam duas mensagens, sendo uma mais recente, menos de duas horas. A primeira havia sido enviada na manhã daquela sexta, e o convidava para uma noitada com amigos. A outra dizia:
“Se não parar de brincar com fantasmas, vai se tornar um”.
Shade se esparramou no sofá. Olhava o celular sem o ver, apenas pensativo, cansado e triste.
- Ele tem razão - Moony sussurrou - Você não devia ficar sozinho assim. Vai acabar te fazendo muito mal.
- Eu não estou sozinho.

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